Ataque Brutal à Delicadeza
- abril 15, 2024
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Daniela e Moura Barbosa São Paulo, 15/04/20243,4 Minuto. No alvorecer do dia 5 de abril de 2024, a poeta e
Daniela e Moura Barbosa São Paulo, 15/04/20243,4 Minuto. No alvorecer do dia 5 de abril de 2024, a poeta e
Daniela e Moura Barbosa
São Paulo, 15/04/2024
3,4 Minuto.
No alvorecer do dia 5 de abril de 2024, a poeta e escritora Roseana Murray saiu, como de costume, para caminhar no condomínio onde mora, em Saquarema, na Região dos Lagos, Rio de Janeiro. Ela foi súbita e violentamente atacada por três cães pitbulls que pertenciam aos vizinhos. De acordo com a imprensa, após os ataques, Roseana foi levada de helicóptero para o hospital, onde passou por cirurgias. A escritora precisou amputar o braço direito e perdeu uma das orelhas. O braço esquerdo foi reconstruído, assim como o lábio.
Roseana Murray dispensaria apresentação (link para o site acima), mas aqui vai: escritora, poeta, mulher comprometida com oficinas de literatura para professores e premiada várias vezes pela FNLIJ com o Prêmio Melhor Poesia Infantil (recebeu muitos outros prêmios também), 73 anos, avó. Sua marca registrada: delicadeza e lirismo.
A sensação de assombro diante notícia residia justamente no fato de a delicadeza ter sido atacada e mutilada brutalmente.
Não se trata aqui, é bom que fique explícito, de condenar a agressividade dos cães. Conforme foi amplamente noticiado, eles já tinham atacado outras pessoas antes, e provavelmente sofriam maus-tratos, estavam com fome e submetidos a condições insalubres. Pitbulls são potencialmente agressivos, mas não necessariamente ferais. Estes eram vítimas daqueles que deveriam ser seus tutores. Os “tutores” responderão pela omissão na cautela aos animais, além de responderem criminalmente pelas lesões corporais culposas sofridas por Roseana.
Sou educadora, com 27 anos de chão de escola, de sala de aula. Durante esses anos encontrei uma professora de Sala de Leitura que me apresentou Roseana Murray ao me oferecer poemas em tirinhas de papel colorido enroladas dentro de um vidro: a poesia nossa de cada dia. Ficamos amigas e esse texto é também para ela. Aqui está uma das tirinhas com as quais ela me presenteou:
Me escondo Atrás da porta Atrás do armário
No fundo do poço Dentro do espelho
Na curva do rio No meio do vento
Dentro de mim
A escola deveria ser o lugar da delicadeza e da beleza, da Aisthesis, da estética. Da educação pelos sentidos, do apreço pelo livro, do cultivo do propósito (Freireano) tão potente e transformador de que “o outro” é um “não eu”. E temos igual valor, do (bom) combate à confusão dos espíritos, apontada por Milton Santos em sua obra antológica, Por uma outra globalização.
Roseana Murray cultivou esse amor na minha amiga educadora, Vera e ela em mim. Mas, as políticas educacionais hoje brutalizam o espaço escolar e minha amiga não conseguiu permanecer nele. A escola é o lugar do bullying, apesar das inúmeras campanhas existentes de (mau) combate a ele. Entretanto, o mal do bullying, assédio, praticado pelo bull, valentão, não será eliminado do cotidiano da escola por milagre ou decreto. A escola reflete a sociedade e nela persistem práticas violentas, também típicas dos sistemas de ensino em diferentes níveis administrativos.
Pensemos no que representa escrever à mão para uma mulher que perdeu um braço. É algo que se conecta com áreas do cérebro relacionadas à criatividade, à lógica e à coordenação motora fina. Educadoras que somos, sempre lutamos pelo desenvolvimento dessas habilidades no educando. E o que dizer da função da orelha? Parte de um sistema responsável pela audição e pelo equilíbrio, mas também do simbólico do ouvir/escutar, algo cada vez mais raro nos dias de hoje. Quem cresceu ouvindo histórias sabe como elas compõem a fortuna e a bagagem com a qual seguiremos pela vida afora.
Depois de alguns dias sem que essa tenebrosa história saísse do meu pensamento, inclusive enquanto eu dava braçadas na natação, os três cães se apresentaram à minha imaginação como um Cérbero, o cão mitológico grego de três cabeças, a fera do Hades. Segundo o mitólogo Junito Brandão em sua obra, Mitologia Grega, ele representa o terror da morte, simbolizando os próprios Infernos e o inferno interior de cada um.
Héracles (ou Hércules), iniciado nos Mistérios de Elêusis, teve que descer ao mundo inferior (movimento de catábase) num dos trabalhos que lhe foram impostos, e dominou o cão de vencida, meio sufocado, usando tão-somente a força de seus braços. Depois de subir (anábase – o inverso) com ele ao palácio de Euristeu, causou tanto pavor que teve que devolvê-lo ao Hades.
Já Orfeu, “por uma ação espiritual”, com os sons irresistíveis de sua lira mágica o adormeceu por alguns instantes. Os neoplatônicos viram em Cérbero o espírito do mal e postulavam que o monstruoso guardião do Hades só pode ser dominado sobre a terra, quer dizer, por uma violenta mudança de nível (de consciência) e pelas forças pessoais de natureza espiritual.
Existe uma retórica do ódio que disputa as narrativas na sociedade hoje. Ódio, na verdade, é o medo do outro. Mas o medo nos vulnerabiliza, nos fragiliza diante do outro, que é visto como vilão. Então, nesta lógica paranoica é preciso combater a vilania e se imbuir de violência, movido pela lógica do “preciso atacar primeiro antes que o outro me ataque”.
A sociedade brasileira está doente. Quem elegeu os deputados federais que votaram a favor da soltura do mandante do assassinato de Marielle Franco? Talvez alguém como o motorista de Uber com quem conversei outro dia, ao afirmar sem um pingo de misericórdia pelas crianças palestinas de Gaza: “guerra é guerra”, vociferou o homem.
Para vencer o Cérbero contemporâneo que a cada dia surge como uma assombração, cada um deve contar consigo mesmo, mas ter a certeza de não estar sozinho nessa jornada heroica. Roseana sempre me pareceu ser mais Orfeu que Héracles, mas talvez as coisas não sejam assim, tão “ou isto ou aquilo”.
O livro de Roseana Murray, “Fardo de Carinho” é uma influência direta da poeta Cecília Meireles. Roseana é amiga de Edna que é amiga de Daniela, autora desse texto que é também amiga de Vera que é leitora de Roseana a partir de Vera, amiga de todas elas. O arquétipo do Self encontra caminhos misteriosos para eleger nossa família espiritual, para escolher quem fomenta a poesia que nos alimenta.
Portanto, sou grata a todas essas mulheres e a esses inusitados encontros com que tenho o privilégio de ser contemplada, às vezes como testemunha, outras vezes como leitora. A individuação é um caminho pessoal, mas, os frutos são coletivos. Como bem enuncia o jagunço poeta Riobaldo, personagem narrador de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa: “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.”
Que os irresistíveis sons da lira mágica de Roseana se espalhem com o vento pelo mundo, nos convidem a dançar, cultivando uma ciranda de afetos e delicadeza.
A autora deste texto é nascida na cidade do Rio de Janeiro em 15 de junho de 1972. Há três décadas atua como docente da rede pública municipal do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias onde, por meio do ensino da Geografia, coordenou diversos projetos voltados para estudantes do ensino básico e da comunidade escolar. Bacharel em Ciências e Letras pelo Colégio Pedro II. Licenciada em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Psicologia Analítica com ênfase em Mitologia, Contos e Artes pelo Instituto Freedom. Participou de diversos cursos livres, entre eles: escrita criativa com Cidinha da Silva; grupo de estudos sobre a obra Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Éstes e O caminho do artista, de Julia Cameron, coordenados por Maria Inez do Espírito Santo; Mitologia Afro-brasileira e Psicologia Analítica e Arteterapia e caminhos, oferecidos pelo Instituto Freedom.
[N.E.: – Esta arte tem o ‘intrigante’ (bom) sentido do complexo Temer-Tremer (Martin Heidegger). O cão de 3 cabeças (em si um signo forte a ser desvendado à luz do raciocínio, apologético, dionisíaco humano) guardando a entrada do Hades, da morte, ou do lugar para onde as almas desprendidas do corpo vão após sua passagem pela superfície do planeta.
Ela aqui mostra um jardim florido. Mas, quem o guarda e de quem? O Hades é um jardim florido (interpretações da morte?) Os que querem entrar não podem estar vivos (Dante na Divina Comédia brinca poeticamente com esta situação, porque um demônio – a literatura ali é cristã! – acha estranho que ele produza sombra, ou seja tem massa, matéria corpórea – e ali é um lugar de almas, penadas, é certo, portanto a pagar por pecados cometidos).
E os que lá estão não podem sair. O que de certa forma destrói, ou limita, a força que torna os espectros capazes de assustar os mortais. Assim, fantasmas não existem? Pelo que parece não na mitologia grega. Ou existem lá? Sei que na persa eles existem, e assustam quando do mal e ajudam quando do bem (gênios)… Com Hades havia um tipo de negócio: devem-se deixar 2 moedas nos olhos do morto, para que o barqueiro o leve para o “descanso” final...]