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Descobrir e Reposicionar Fármacos e Remédios

  • maio 14, 2021
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Testes farmacológicos irão demonstrar se o fármaco causa algum efeito agudo perigoso como arritmias cardíacas (alguém aí se lembrou da cloroquina?)...

Descobrir e Reposicionar Fármacos e Remédios

Com certeza você já tomou diversas classes diferentes de medicamentos no decorrer da sua vida. Antibióticos, anti-inflamatórios, antipiréticos etc. Mas você já parou para pensar como esse fármaco foi descoberto?

Dra. Bianca de Miranda Peres

São Paulo, 14/05 de 2021.

2 Minutos

Ou como foi desenvolvido? Que testes foram feitos para que ele pudesse ser utilizado por você com segurança? De fato, até que o medicamento chegue nas prateleiras das farmácias, existe muito tempo, dinheiro e esforço envolvidos.

Embora o processo ainda envolva a academia, as farmacêuticas passaram a contratar pesquisadores para essa finalidade. Portanto, grande parte dos fármacos hoje utilizados resultaram do trabalho desenvolvido nos laboratórios privados. Aliás, isso gera uma discussão que não cabe aqui no momento. Afinal, o que acontece com os fármacos para cura de doenças que não são do interesse dessas companhias? 

De maneira bem resumida, o processo completo para a produção de um fármaco pode ser dividido em 3 partes. I) Descoberta, ou seja, a fase da identificação da atividade de um composto, II) Desenvolvimento pré-clínico, fase na qual esses compostos serão testados quanto à segurança e eficácia (envolve diferentes estudos em não humanos) e III) Desenvolvimento clínico, na qual o composto será testado quanto à eficácia e possíveis efeitos adversos em humanos.

A fase de descoberta de um fármaco começa, na verdade, com um propósito. Ou seja, em qual doença o fármaco atuará? No caso, meu objetivo é descobrir um composto que tenha atividade contra o SARS-CoV-2. Porém, em alguns casos, é possível basear a pesquisa no melhoramento de um medicamento já existente. Para isso, é preciso que os cientistas selecionem um novo alvo molecular. Em outras palavras, o medicamento precisará atuar de uma maneira diferente daquela já conhecida.

Começa com um propósito. Ou seja, em qual doença o fármaco atuará?
Começa com um propósito. Ou seja, em qual doença o fármaco atuará? (Img. cedida)

Essa fase de descoberta pode ocorrer de diferentes maneiras. Uma delas é fazer uma procura mais direcionada, ou seja, baseada em um conhecimento prévio do alvo. Um exemplo: os cientistas descobriram que o novo coronavírus pode entrar nas células através do receptor ACE-2.

Isso abre diversas possibilidades de ação: o fármaco pode se ligar ao receptor de modo competitivo com o vírus (e não deixar ele se ligar), pode inibir o receptor ou mesmo se ligar ao vírus e impedir que ele chegue ao receptor.

Outros recursos

A descoberta também pode ser realizada pela avaliação de compostos naturais, sobre os quais muitas vezes não há nenhuma atividade antimicrobiana. Há ainda uma terceira possibilidade; triar compostos de ação conhecida, geralmente já aprovados como medicamentos, quanto à sua eficácia frente a um novo agente patológico. Nesse caso, o descobrimento ganha um nome especial, reposicionamento. O reposicionamento é um processo que economiza muito tempo e dinheiro no processo de desenvolvimento de um fármaco, pois já se tem um vasto conhecimento sobre aquela molécula.

Na indústria, é possível testar milhares de compostos por dia de modo automatizado. Aliado à possibilidade de produção de famílias de compostos relacionados por meio da química combinatória, a fase de descobrimento tornou-se muito mais rápida. Imaginem que anteriormente os compostos eram sintetizados e purificados 1 a 1! Outras técnicas que facilitam a fase de descoberta, são a cristalografia de raios-X e a modelagem computacional.

Isso porque, com poucas exceções, os alvos dos fármacos são proteínas funcionais. O conhecimento da estrutura tridimensional da proteína-alvo possibilita a identificação de potenciais estruturas-guia, reduzindo-se assim a quantidade de moléculas que devam ser testadas.

Uma vez que um composto guia tenha sido selecionado, eles passam para uma fase de otimização. Essa etapa tem por objetivo potencializar a atividade e, ao mesmo tempo, aprimorar especificidade e propriedades farmacocinéticas. Esse é o momento de testá-lo em diferentes sistemas e em modelos animais (quando possível). No entanto, alguns compostos simplesmente não podem ser aprimorados e outros não conseguem produzir os efeitos esperados nos modelos. Em suma, apenas uma minoria passa à próxima fase de desenvolvimento pré-clínico.

Entre 2 a 5 anos são necessários para que a etapa de descoberta de um fármaco seja concluída. Depois da triagem de imensas bibliotecas de compostos, uma pequena parcela de candidatos, segue para os testes pré-clínicos.

Testes farmacológicos irão demonstrar se o fármaco causa algum efeito agudo perigoso como arritmias cardíacas.
Testes farmacológicos irão demonstrar se o fármaco causa algum efeito agudo perigoso como arritmias cardíacas. (Img. cedida)
A fase pré-clínica

Para um fármaco típico, essa etapa dura em torno de 1 ano e meio. E como isso ocorre? O que é preciso? Que critérios devem ser satisfeitos para que o potencial fármaco possa ser avaliado na próxima etapa, a tão esperada fase de experimentação em humanos?

Uma questão óbvia está relacionada à segurança. Testes farmacológicos irão demonstrar se o fármaco causa algum efeito agudo perigoso como arritmias cardíacas (alguém aí se lembrou da cloroquina?), alteração na pressão, constrição brônquica etc. Já os testes toxicológicos são necessários para avaliar a genotoxicidade e determinar a dosagem máxima não tóxica.

Os testes farmacocinéticos e farmacodinâmicos respondem às perguntas: como o fármaco é absorvido? Como é metabolizado? Como é distribuído? E, por fim, como é eliminado? Além disso, esses ensaios relacionam os efeitos farmacológicos e toxicológicos à concentração plasmática e à exposição ao fármaco.

Em outras palavras, o objetivo é determinar como age aquele fármaco naquela dose, naquela via de exposição e o que ocorre com aquela molécula no modelo animal.

Por fim, é preciso avaliar se a síntese em larga escala é viável e se o composto é estável frente a diferentes situações. Não podemos esquecer do desenvolvimento da fórmula adequada aos estudos clínicos.

A etapa pré-clínica segue um rigor maior quanto às boas práticas laboratoriais em relação à etapa de descobrimento. Espera-se, com isso, eliminar ao máximo os erros humanos e garantir a confiabilidade dos resultados. Infelizmente, muitos fármacos não atendem aos critérios estabelecidos durante essa fase. Já em relação aos promissores, um relatório detalhado é preparado e submetido às agências reguladoras. Nos EUA, essa corresponde à famosa FDA (Food and Drug Administration). No Brasil, temos a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Veja um exemplo bem recente. O Instituto Butantã submeteu à ANVISA* um pedido de autorização para a realização de testes clínicos com soro ANTI-COVID**. Nesse caso, a própria ANVISA exigiu alguns testes aos pesquisadores. Esse é um procedimento comum, já que obter esse tipo de aprovação não é nada fácil (que bom né?!)

Mesmo que um composto seja aprovado, os ensaios não clínicos não cessam. Afinal, é preciso avaliar a toxicidade a longo prazo (primeiramente nos modelos animais). Caso a entidade reguladora conceda a aprovação, o candidato passa à fase de desenvolvimento clínico.

*Nesse exemplo, o fármaco enquadra-se categoria de terapias avançadas. Leia aqui: https://www.facebook.com/drabiancaperes/photos/pcb.180974410151877/180974073485244/

A fase clínica

Depois de anos de pesquisa, muitos ajustes e alto investimento financeiro, chega a hora da verdade. Será que aquele composto pode ser utilizado em seres humanos com segurança e eficácia? E é justamente isso que será investigado na fase clínica. Essa etapa é tão complexa que é subdividida em 3 fases e requer de 5 a 7 anos para finalização dos estudos. Se somarmos esses anos com os requeridos às duas etapas anteriores, no pior cenário, 14 anos são requeridos para que o fármaco chegue à fase de aprovação regulamentar. E não pense que acabou! A revisão dos dados pelas agências reguladoras ainda pode levar mais 2 anos!!!

De forma resumida, nos estudos da fase I, os testes são realizados em poucos voluntários (geralmente homens jovens e saudáveis), mas também em alguns pacientes. O objetivo é verificar as propriedades farmacocinéticas e possíveis efeitos perigosos e/ou indesejados. Em alguns casos, também podem ser testadas as propriedades farmacodinâmicas (basicamente verifica-se o efeito dose-resposta).

Descobrir e Reposicionar Fármacos e Remédios. A Etapa definitiva abrange ensaios aleatórios e duplos-cegos, aplicados em milhares de pacientes.
Descobrir e Reposicionar Fármacos e Remédios. A Etapa definitiva abrange ensaios aleatórios e duplos-cegos, aplicados em milhares de pacientes. (Img. cedida)

Na fase II, o objetivo é de fato verificar se o composto apresenta o efeito desejado bem como estabelecer a dose a ser utilizado na próxima fase. Dessa maneira, o número de voluntários é maior ao da etapa precedente.

A fase III corresponde à etapa definitiva e abrange ensaios aleatórios e duplos-cegos aplicados em milhares de pacientes. Uma vez que o fármaco (agora de fato podendo receber essa nomenclatura, pois se trata de uma substância química de estrutura conhecida e que produz um efeito biológico), tenha sido aprovado e passa a ser comercializado, a investigação continua.

Na etapa de vigilância pós-comercialização (que pode ser chamada de fase IV), o objetivo é detectar eventuais efeitos raros e em longo prazo, que podem limitar a utilização a apenas determinados grupos de pacientes ou até mesmo levar à suspensão.

Como vimos, os voluntários são fundamentais na pesquisa de fármacos. Eu, particularmente, não conheço ninguém que tenha sido voluntário em nenhum estudo e fiquei curiosa para saber mais como isso funciona. Uma das formas de participar é através do preenchimento de um cadastro prévio.

No entanto, mesmo que você queira participar como voluntário de determinado estudo, é preciso satisfazer alguns critérios que garantem a sua segurança e a validade dos dados obtidos. Outra maneira é ser convidado por equipes médicas.

Quem leu o texto anterior*, deve se lembrar do exemplo do soro contra a COVID-19 que está sendo produzido no Instituto Butantã. O soro é uma forma de tratamento que busca reduzir o agravamento da doença em pessoas já infectadas. Além da determinação do perfil dos voluntários, nesse tipo de estudo também é preciso avaliar as variáveis estatísticas, definir as doses e o perfil dos voluntários. Nesse caso, os voluntários são pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 e, a princípio, o soro será testado em pacientes transplantados no Hospital do Rim e em pacientes internados no Hospital das Clínicas que tenham comorbidades.

https://www.jornalopcao.com.br/reportagens/soro-contra-covid-19-recapitula-mais-de-cem-anos-de-excelencia-do-instituto-butantan-324807

Dra. Bianca de Miranda Perez – Bióloga e doutora em Microbiologia – Pós-doc descobrimento de fármacos

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