Desenvolvimento Tecnológico e ID Digital
- abril 19, 2025
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Há quem diga que o estado quer o controle total sobre os cidadãos. Há quem diga que a segurança é mais importante do que a liberdade...Haverá quem o
Há quem diga que o estado quer o controle total sobre os cidadãos. Há quem diga que a segurança é mais importante do que a liberdade...Haverá quem o
Tulio Chiarini – IPEA
São Paulo, 19/04/2025
13 Minutos.
Quando uma inovação atinge esse nível de impacto, ela se torna o alicerce de novos paradigmas tecno-sociais e tecno-econômicos, conforme apontado pela economista anglo-venezuelana Carlota Perez. Foi assim com a máquina a vapor, a eletricidade e a microeletrônica.
O Estado nunca esteve alheio a essas revoluções, ora adotando novas tecnologias, ora influenciando as trajetórias tecnológicas. No século IV a.C., por exemplo, o Império Romano traçou a Via Appia — cuja construção exigiu inovações técnicas, para conectar territórios, otimizar a arrecadação de impostos e expandir sua administração.
Os esforços investidos nesta empreitada não apenas produziram resultados, mas também favoreceram inovações institucionais nas práticas políticas romanas.
Assim como no passado as grandes civilizações moldaram suas infraestruturas para garantir governança e eficiência. No mundo contemporâneo, a infraestrutura essencial não é mais física, mas digital. Se no Império Romano a Via Appia conectava territórios e facilitava a administração, hoje, esse papel é desempenhado pelas infraestruturas digitais, definindo novos modelos de controle e poder.
Entre as diversas invenções tecnológicas, quatro áreas interrelacionadas formam uma dinâmica específica: componentes, computadores, software e redes. Em conformidade ao proposto pelo pesquisador Eduardo da Motta e Albuquerque, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar-UFMG).
Albuquerque defende que as transformações sociais e econômicas possibilitadas pela difusão e adoção do microprocessador ganharam novo impulso com a invenção da World Wide Web (WWW), sobretudo pelo avanço da digitalização.
Com a expansão da digitalização e da vida online, a identificação das pessoas tornou-se um desafio cada vez mais complexo. As primeiras identidades digitais surgiram nos anos 1990, à medida que a internet se tornava mais acessível. Um dos primeiros sistemas com esse objetivo foi o Microsoft Passport, lançado em 1999, que oferecia um mecanismo de autenticação única (single sign-on).
Assim, era permitido aos usuários que acessassem serviços da Microsoft, como o e-mail Hotmail e o MSN, conjunto de serviços online e aplicativos da Microsoft. Nos anos 2000, a Google seguiu por esse mesmo caminho com a criação do Google Account, inicialmente voltado para o Gmail, mas logo expandido para conectar outros serviços, como YouTube, Google Drive e Android.
Desde então, o conceito de identidade digital evoluiu significativamente. Hoje, gigantes da tecnologia (big techs) oferecem sistemas sofisticados de autenticação, como Apple ID, Facebook Login e Google Sign-In. Estes facilitam o acesso a uma ampla gama de sites e aplicativos, ao mesmo tempo que ampliam o domínio dessas empresas sobre a identidade digital dos usuários.
Diante do crescente debate sobre privacidade, vigilância e concentração de dados nas mãos das big techs — que extraem e perfilam informações dos usuários, garantindo-lhes monopólios intelectuais —, governos passaram a desenvolver seus próprios sistemas de identidade digital. A primeira iniciativa desse tipo surgiu em 2001, quando a Estônia lançou o e-Residency e o ID-kaart, um dos primeiros sistemas nacionais obrigatórios de identidade digital no mundo.
No Brasil, o governo vem implementando um sistema de identidade única há alguns anos, com o objetivo de aumentar a eficiência estatal, combater fraudes e simplificar a vida do cidadão. Recentemente, um conjunto de normativas reforçou a intenção de modernizar a identificação civil no país, tendo a Carteira de Identidade Nacional (CIN) como peça central para promover eficiência administrativa, segurança pública e inclusão digital. A unificação dos registros em torno do CPF e a integração com a plataforma Gov.br são pilares dessa transformação, buscando garantir uma governança digital mais eficiente e acessível.
Com a crescente digitalização da identidade, surgiram soluções mais sofisticadas para gerenciar informações pessoais, garantindo maior segurança e controle. É nesse contexto que entram as carteiras de documentos digitais (digital wallets).
Embora não haja uma definição única, o chefe adjunto da Unidade de Tecnologia e Privacidade da Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (European Data Protection Supervisor) Massimo Attoresi propõe uma abordagem clara: “Uma carteira de documentos digitais é um aplicativo que permite o armazenamento seguro, a gestão e o compartilhamento de dados de identificação pessoal, credenciais e outros atributos relacionados ao proprietário dessa carteira virtual.”
Essencialmente, essas carteiras de documentos digitais são versões eletrônicas das tradicionais carteiras de documentos físicos. Com a vantagem de armazenar atributos digitais, como documentos oficiais, credenciais acadêmicas e certificados profissionais. Elas podem existir em diversas formas, incluindo aplicativos móveis, extensões de navegador e dispositivos de hardware dedicados. Do ponto de vista sociotécnico, tanto as identidades digitais quanto as carteiras de documento digitais representam infraestruturas essenciais para a vida digital. Possibilitam uma maior governança pública e permite que o Estado atue como regulador e facilitador de mercados.
As primeiras carteiras de documentos digitais surgiram com a evolução das tecnologias móveis e a necessidade de digitalizar credenciais físicas. Algumas das pioneiras foram a Google Wallet, lançada em 2011, que evoluiu para armazenar cartões de crédito, débito e passes de transporte. Apesar disso, não era voltada para documentos oficiais.
Em seguida, a Apple lançou a App Wallet (originalmente chamada Passbook), que permitia armazenar cartões de embarque, ingressos e cupons de desconto. Com o tempo, começou a integrar documentos como carteiras de identidade digitais em alguns países, carteiras de motorista nos Estados Unidos e chaves de carros e casas.
Uma revisão sistemática da literatura mostrou que há modelos distintos de carteiras de documentos digitais, com implicações diretas na privacidade e autonomia do usuário. No modelo centralizado, utilizado por gigantes como Google e Apple, um único provedor armazena e gerencia informações pessoais. Isso cria riscos de rastreamento e vulnerabilidade a ataques cibernéticos.
O modelo federado distribui essa responsabilidade entre diferentes instituições confiáveis, enquanto o modelo centrado no usuário, baseado no conceito de identidade auto-soberana, coloca o controle total dos dados nas mãos do próprio cidadão.
Para garantir maior interoperabilidade entre diferentes sistemas de identificação eletrônica e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, a União Europeia (UE) desenvolveu a Carteira de Identidade Digital da União Europeia — European Union Digital Identity Wallet (EDIW). A iniciativa busca oferecer uma solução segura e confiável, permitindo que os cidadãos gerenciem seus documentos digitais de forma autônoma, sem depender de plataformas privadas.
A implementação da EDIW enfrenta desafios, como a necessidade de equilibrar segurança e usabilidade, promover a interoperabilidade e garantir a adoção em larga escala. Contudo, a UE está avançando com o Quadro Europeu de Identidade Digital, estabelecendo regras para garantir que todos os cidadãos tenham controle total sobre sua identidade digital. Assim, ao mesmo tempo facilita o acesso a serviços públicos e privados de forma mais segura e eficiente.
A implementação da EDIW apresenta um aspecto interessante: a própria Comissão Europeia disponibiliza recursos por meio de chamadas públicas para o desenvolvimento de soluções. Cada chamada para subvenções segue um conjunto de condições específicas, que variam conforme o programa de financiamento, seus objetivos e as prioridades políticas da Comissão Europeia.
Essas subvenções estão abertas a todos os membros da UE que atendam aos requisitos estabelecidos. Um exemplo é o Digital Europe Programme (DIGITAL), programa voltado à aplicação de tecnologias digitais em empresas, cidadãos e administrações públicas. No âmbito dessa iniciativa, a chamada “Accelerating Best Use of Technologies” (DIGITAL-2022-DEPLOY-02) destinou 19,2 milhões de euros para financiar projetos relacionados à EDIW. É o Estado indicando a trajetória tecnológica.
O Caso brasileiro: a Carteira de Documentos Digitais
Se na Europa o avanço das carteiras de documentos digitais se dá sob um arcabouço regulatório rigoroso, garantindo maior controle ao cidadã. No Brasil, a sua implementação segue outro caminho, priorizando eficiência administrativa e centralização governamental.
O governo brasileiro desenvolveu a Carteira de Documentos Digitais, integrada ao aplicativo Gov.br, para centralizar digitalmente documentos essenciais como a Carteira de Identidade Nacional (CIN), a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), a Carteira de Habilitação Técnica (CHT) e certificados militares como o Certificado de Dispensa de Incorporação (CDI), o Certificado de Alistamento Militar (CAM) e o Certificado de Reservista (CR).
A iniciativa busca simplificar o armazenamento e gerenciamento de informações pessoais, oferecendo mais praticidade e segurança.
Com a Carteira de Documentos Digitais, os usuários podem se identificar presencialmente apresentando documentos digitais, como a CNH, respeitando as regulamentações específicas de cada documento. O aplicativo também permite visualizar todos os arquivos armazenados, embora alguns precisem ser digitalizados pelo órgão emissor antes de serem incorporados à carteira.
Tulio Chiarini – Analista em Ciência e Tecnologia do CTS/Ipea.