Desmanchando Machos no Ar
- janeiro 7, 2023
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O Profº e Psicanliasta Jorge Miklos analisa a série da Netflix que trata da "vaporização" dos modelos conservadores, oportunistas e tradicionais das sociedades patriarcais, machistas e 'modernas'.
O Profº e Psicanliasta Jorge Miklos analisa a série da Netflix que trata da "vaporização" dos modelos conservadores, oportunistas e tradicionais das sociedades patriarcais, machistas e 'modernas'.
“Quem sabe o super-homem / Venha nos restituir a glória / Mudando como um deus o curso da história/ Por causa da mulher”
Gilberto Gil – Super-homem (A canção)
São Paulo, 07/01/2023.
3 Minutos.
Por indicação da amiga e pesquisadora Priscila Magossi, iniciei 2023 maratonando o seriado Machos Alfa, uma série disponibilizada pela plataforma de streaming Netflix, produzida em 2022. Criada por Alberto Caballero, Laura Caballero, Daniel Deorador, Araceli Álvarez de Sotomayor. A narrativa, leve e irreverente, dividida em dez episódios, revela as crises de quatro homens – os amigos Pedro, Luís, Raul e Santi – cujos valores ‘sólidos’, herdados do patriarcado, entram em conflito com os valores ‘líquidos’ (expressão consagrada pelo sociólogo Zygmunt Bauman1) do mundo contemporâneo.
Moldados pela solidez e rigidez do machismo, os personagens, por conta das reivindicações de mulheres transformadas pelo feminismo, se veem desafiados a liquefazer (flexibilizar), desconstruir e ressignificar seus comportamentos e identidades. Valores antes inquestionáveis (sólidos) para os homens – virilidade, poder econômico, monogamia, heteronormatividade, omissão dos sentimentos – “se desmancham no ar”2.
Entre uma demissão, uma relação aberta, um casamento em crise e um divórcio, quatro amigos de meia-idade tentam se ajustar à era das novas masculinidades. Priscila Magossi, comentou que, para ela, nesse seriado as personagens femininas são felizes. Em outros seriados “ou são sexys e más, ou sexys e boazinhas/puras ou sexys salvando o mundo, mas, não são felizes”. No seriado, as personagens femininas são os vetores de transformação do masculino. Como diz a letra da canção do Gil, os homens são desfiados a mudarem o curso de suas histórias por causa das mulheres. O feminino é o vetor para a transformação do masculino. As mulheres oferecem para os homens a oportunidade de mudança.
Pedro, um alto executivo de uma emissora de televisão, ao chegar ao escritório, é notificado de que foi demitido e que seu cargo será ocupado por uma mulher. A nova executiva, reconhece a experiência de Pedro e o convida para aceitar a mudança e integrar-se na equipe que será liderada por ela. De forma arrogante, Pedro rejeita o convite. Ao chegar em casa (uma mansão que ele acaba de comprar), ele retarda comunicar sua companheira, Daniela, da nova situação. Quando o faz, ela o acolhe e o ampara. Mesmo assim, Pedro rejeita o apoio de Daniela e se recusa a aceitar a nova situação, a perder o seu papel de provedor, a modular o seu padrão de vida. Não desiste de manter a casa mesmo com dívidas de hipotecas e a imagem de homem rico, provedor e bem-sucedido.
Porém, não é só o desemprego que irá afetar a fantasia de virilidade de Pedro. Daniela, inicia uma carreira profissional e torna-se uma influencer, ou melhor, como ela se autodenomina criadora de conteúdo! Priscila Magossi chama atenção de que Daniela vive uma reprogramação: “ter que caber dentro de um cardápio determinado por feeds algortimicos de base ideológica estabelecidos por grandes oligopólios ciberculturais”. Ou seja, “Daniela acha que está fazendo uma escolha (“empreendendo”, “empoderando-se”), mas não está pois, é obrigada a ser exatamente o que a marca quer que ela seja.3
Daniela rapidamente obtém êxito e Pedro é obrigado a encarar uma situação que gera crise e angústia para homens que performam a masculinidade hegemônica: Pedro entra em declínio profissional, Daniela em ascensão. É emblemático o comentário feito por Patrícia, funcionária da casa: “perder o trabalho para o homem é como perder o pênis!”. Pedro é o homem psicologicamente intransigente, intolerante. Não aceita a mutação.
Mesmo diante da implacável contingência de transformação, Pedro permanece agarrado à sua persona sólida rígida e inflexível. Pedro se considera “imbrochável”. Os conflitos com Daniela tornam-se cada vez mais intensos. Recrudescem quando ela o convida para trabalhar com ela. Pedro sente-se humilhado. Pedro humilha Daniela, desqualificando o seu trabalho. No decorrer da narrativa, para negar a conquista de Daniela bem como, a possibilidade de ressignificar a masculinidade, Pedro, paradoxalmente, torna-se um influencer (Moisés dos machistas) e cria um canal oferecendo a homens um curso para resgatar a virilidade perdida.
A insegurança neurótica de Pedro se faz presente ao longo de toda narrativa. O machismo de Pedro é uma espécie de projeção do acúmulo de incerteza de si, arremessado na lama anti-erótica do desejo mais intenso de ficar com quem ama, Daniela. Pedro quer controlar o incontrolável, e fica cego de raiva pela frustração de não conseguir. O ego frágil de Pedro desenvolve um narcisismo defensivo, uma persona resistente. Como bem disse Simone de Beauvoir: “Ninguém é mais arrogante, violento, agressivo e desdenhoso contra as mulheres, que um homem inseguro de sua própria virilidade”. O machismo de Pedro destrói a relação tal qual, destrói a ele mesmo. Exemplo lúgubre de masculinidade tóxica.
Pedro precisaria de umas “aulas” com Vinícius de Moraes.
“Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto – pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente, não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer “baixo” seu, a amada sente – e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia – para viver um grande amor. É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que – que não quer nada com o amor. Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva escura e desvairada não se souber achar a bem-amada – para viver um grande amor.”
Vinícius de Moraes em Para Viver um Grande Amor
Luz e Raul
Luz é uma mulher empoderada em todos os âmbitos. Assumiu pleno comando de seu desejo, seu corpo, sua sexualidade, seus relacionamentos e de sua carreira profissional. Luz namora Raul, um homem com dificuldades profissionais e financeiras. É sócio de um bar, mas não se identifica com seu trabalho. Mantém um caso extraconjugal com a parceira do seu sócio. Na mesma linha de Pedro, Raul, performa uma masculidade hegemônica, trazendo em seu discurso falas machistas, sexistas, homofóbicas.
Na narrativa a crise se instaura quando a namorada Luz, propõe que o relacionamento seja aberto. Ou seja, uma relação em que eles romperiam com a monogamia e passariam a ter relações sexuais com terceiros sem que isso fosse considerado traição ou infidelidade. No início, Raul se sente ofendido, se recusa a aceitar. Num rompante de indignação sai de casa, mas, depois reconsidera e aceita a proposta. As regras: não repetir os encontros com a mesma pessoa, não fazer sexo com amigos. O contrato rompe também com a heteronormatividade visto que, considera possível que ambos se envolvam com homens e mulheres.
Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir são a mais conhecida referência neste tema. Com seu relacionamento iniciado nos idos dos anos 1920, Sartre afirmou: “entre nós, trata-se de um amor necessário: convém que conheçamos também amores contingentes”.
A narrativa explicita que, para Luz, a relação aberta traz satisfação pois, impede que a monogamia estorve a realização do desejo sexual. Para Raul, a abertura da relação traz angústias. Raul está preso nos valores machistas que consideram o corpo e desejo dela como suas propriedades.
Para o homem, a poligamia é permitida e estimulada, uma prova de virilidade, mas, é interditada à mulher. No bojo do patriarcado, o corpo da mulher é objeto de posse exclusiva do parceiro masculino. Além disso, o fato de Luz se relacionar com outros homens coloca em risco a autoestima. Após um ménage com uma mulher, Luz propõe a Raul que eles experimentem um ménage com outro homem. Raul se sente ameaçado pelo falo concorrente.
Diante do sucesso profissional de Luz e da sua postura aberta em relação ao desejo, Raul se sente ameaçado e se protege, semelhante a Pedro, na sua máscara machista. O machismo de Raul prospecta dominação interditando o gozo. Na mesma linha de Pedro, Raul não consegue se libertar do torturante leito de Procrusto do machismo. A crise para Raul foi muro e não porta.
Como escreveu Drummond:
A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim, não era possível atingir toda a verdade / Porque a meia pessoa que entrava / Só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade / Voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam. / Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. / Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos. / Era dividida em metades
Diferentes uma da outra / Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela. / E carecia optar. Cada um optou conforme / Seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade em – Verdade
Esther e Luís
A narrativa inicia com o casal na cama e, após Luís chegar no quarto informando que, após um longo trabalho, as crianças tinham finalmente dormido, Esther reclama ao marido que ele não a procura sexualmente há muito tempo. Ele revida justificando que está cansado. O diálogo e as performances corporais são temperados com muito humor.
Luís trabalha como policial. Esther é instrutora de autoescola. Eles são casados, estão na meia idade e tem dois filhos (um casal) que se encontram na infância e que requerem muita atenção de ambos. O casal está engolido por uma rotina estressante. Trabalho, filhos, hipoteca. E em meio a tudo isso, se percebem envelhecendo. No núcleo do conflito entre Esther e Luís não está apenas a perda do interesse sexual, mas a crise da meia idade. Porém, a falta de atividade sexual do casal passa a ser bode expiatório, a justificativa de todos os problemas que o casal enfrenta.
O filho é diagnosticado com TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) e medicado. Luís questiona a medicação e ao lerem a receita descobrem que entre os efeitos colaterais, o medicamento pode causar perda de apetite e de peso. Esther então, escondido de Luís, passa a consumir o medicamento em busca do milagre do emagrecimento e do corpo performado de acordo com o padrão da indústria cultural. Luís, por sua vez vai a um médico que lhe prescreve testosterona.
Nesse núcleo do seriado parece-nos trazer uma marca da nossa época já mapeada pelo filósofo teuto-coreano Byung-Chul Han: A Sociedade do Cansaço4. Diante da crise da meia idade, o casal sente o cansaço (burnout) diante do imperativo de responder à expectativa de alta performance, ditada pelo espírito do nosso tempo. Empreender e atingir resultados no sexo, no trabalho, nas finanças, na educação dos filhos, nas redes sociais digitais. Tudo em nome da expectativa de sermos cronicamente felizes.
O casal Esther e Luís corresponde no seriado ao novo espírito do capitalismo emocional – “uma cultura em que práticas e discursos emocionais e econômicos se configuram mutuamente”5 e que se difunde pelo marketing que a felicidade é um ‘bem subjetivo’, um ‘capital psicológico’ passível de ser acumulado e investido bem como “um combustível importante para quem pretende crescer na carreira”.
A alta performance no sexo é uma metonímia que corresponde ao combustível indispensável para a adaptabilidade do indivíduo na sociedade da alta performance, definida pelo filósofo Byung-Chul Han como uma sociedade que estabelece modos de vida que se expressam por um excesso ou tirania da alta performance e da positividade, produzindo sujeitos que devem buscar sempre superar-se com relação aos seus ganhos.
Com isso, são engendradas subjetividades e sociabilidades agenciadas pela multitarefa e constante (auto)produção. Nessa lógica, para Esther e Luís alcançarem alto rendimento, eles precisariam buscar ferramentas para elevar o seu coeficiente performático. Para tanto, recorrem às novas ciências instrumentais como medicina, psicoterapias, personal training e seus apêndices fast foods como os coachings, autoajudas e toda sorte de espiritualidades gerenciais. Os dispositivos de autoajuda em prol do biopoder e do sofrimento humano
O núcleo do casal Esther e Luís sugere muitas críticas pertinentes: patologização da infância (indústria dos diagnósticos de TDAH), medicalização (fármacos usados como estratégias milagrosas para a adequação a normatividade social), ditadura da estética corporal que recai principalmente sobre as mulheres com mais ênfase sobre as mulheres de meia idade. Porém, o sexo, passa a ser o vilão e o foco do conflito. Na fantasia do casal, mais atividade sexual iria resolver milagrosamente todos os problemas. Testosterona para bater metas e atingir a alta performance na vida e na cama. Em meio à crise, o casal busca uma psicoterapia que valida a percepção de ambos. Sentença: sem sexo, sem casamento. A psicoterapeuta, também colonizada pela cultura da alta performance, olha para a parte e não para o todo.
Esther, em sua busca pela felicidade sexual, investe no relacionamento paralelo com o seu personal. Luís descobre, o casal se separa e inicia-se uma crise transformadora para ambos. Ao contrário de Pedro e Raul, Luís, menos rígido e mais flexível, absorve com dor a crise no casamento e na vida, mas, permite-se abrir para oportunidade de transformação o que implica na desconstrução do machismo e da masculinidade tóxica. A crise transforma também Esther que, aos poucos, muda a percepção sobre si mesma, sobre o casamento, sobre o parceiro, sobre os filhos e sobre a realidade. Ambos passam por um processo que a Psicologia Analítica denomina de metanoia.
A metanoia caracteriza-se por um processo psicológico que pode ocorrer a partir do meio da vida, em que intensos fluxos de energia do inconsciente fluem em direção à consciência, trazendo novos conteúdos para a psique consciente e reaproximando conteúdos reprimidos ou negligenciados no passado para que possam ser elaborados e integrados pelo ego. Esse processo mobiliza tanto crises como também desenvolvimentos emocionais.
A metanoia é um corte. É neste corte que é possível o nascimento de uma nova identidade. Cavalheiro afirma: “Ela produz angústia, depressão, pensamentos de morte, assim como perspectiva de liberdade, de planos de um novo renovador que muda o rumo de uma vida” 6
O núcleo Esther e Luís nos leva às palavras de Fernando Sabino:
De tudo ficam três coisas:
A certeza de que estamos sempre começando,
A certeza de que é preciso continuar
A certeza de podemos ser interrompidos antes de terminar,
Portanto devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo
Da queda um passo de dança,
Do medo uma escada,
Do sonho uma ponte,
Da procura um encontro.
Fernando Sabino em O Encontro Marcado7
O quatro é composto por Blanca, ex-esposa de Santi e a filha do casal, Alex. Santi mora sozinho, está separado de Blanca após ter descoberto que ela tinha um caso extraconjugal com o dentista da filha. A narrativa tem início quando ao entrar no seu apartamento, Santi descobre que a filha optou por morar com ele e não com a mãe. A escolha instaura conflitos com Blanca e, sobretudo, grandes mudanças para Santi.
Alex é uma adolescente que pertence à geração Z (15-20 anos). Alex tem uma íntima relação com o mundo digital, rechaça a rigidez das hierarquias e das formalidades, valoriza sua autonomia e não se fixa a nenhum padrão identitário de maneira permanente. Define-se como não binária e ao longo dos episódios enuncia várias frases que vão mostrando ao pai que a postura machista sólida não se adequa mais aos novos tempos.
Alex cria um perfil de Santi no Tinder e estimula o pai a sair e conhecer muitas mulheres. Segundo ela, ele precisaria sair com pelo menos dez mulheres para esquecer o relacionamento com Blanca uma vez que a despeito da traição, Santi ainda se sente vinculado à ex-mulher.
Dos quatro personagens, Santi é o mais flexível e mais aberto a experimentar novas formas identitárias e de relacionamento. É Santi que convence Pedro, Raul e Luís a participarem de um seminário sobre masculinidade tóxica e incentiva os amigos da importância de se desconstruírem e se ressignificarem.
O núcleo Blanca, Alex e Santi é o que mais se aproxima do que Bauman chamou de “era da liquidez” na qual os valores – especificamente os patriarcais – da cultura ocidental cada vez mais diluem-se como a água que se escorre das nossas mãos, sem que sejamos capazes de detê-la. A vida líquida de Santi é uma vida precária, vivida em condições de incertezas constantes. As diversas aventuras de Santi por intermédio dos aplicativos de relacionamento mostram de certa forma o empobrecimento das relações interpessoais, incapacidade de compreender “o outro” com sua pluralidade simbólica, a transformação do ser humano em mercadoria consumível nos aplicativos.
Os relacionamentos de Santi demonstram o que Bauman apontava para o enquadre e a performance na cultura contemporânea na qual não basta penas consumir é preciso também ser “consumível”, transformando a própria aparência em commodity capaz de ser ofertada tanto para relacionamentos quanto para o mercado de trabalho. Nos sites de relacionamento, o produto que se coloca no mercado é a própria pessoa. Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável.8
Como foi dito, o personagem Santi é dos quatro amigos aquele que mais abertura oferece a desconstruir a masculinidade tóxica e reinventar uma nova masculinidade. A flexibilidade não poupa Santi a atravessar várias situações conflituosas. Afinal, quando nos despimos de uma identidade e de uma persona precisamos construir outra. Que persona, que identidade constituir num ambiente cultural de identidades fragmentadas, flácidas, fluidas e líquidas?
O machismo institui aos meninos que o tamanho do pênis regula a sua masculinidade; sentencia aos homens que não há espaço para demonstrar sentimentos, emoções; treina os adolescentes para que percebam que a masculinidade do homem é mensurável pelo dinheiro, pela marca do carro e pelo sucesso profissional. O leito de Procusto se faz presente nos ambientes familiares, escolares, empresariais e políticos e midiáticos. O leito de Procusto é uma cama de pregos, se por um lado adapta o homem à cultura patriarcal e machista, por outro, causa dor e sofrimento.
Sabemos que a construção da ideia de uma masculinidade e do que é ser homem está totalmente atrelada ao modo como são organizadas as sociedades ocidentais capitalistas. Em outras épocas e outros lugares, havia outras formas de organizar as corporeidades que não essa binária e opositiva.
Nessa divisão, a constituição do homem como categoria universal favorece as formas de dominação masculina e empobrece o mundo subjetivo da masculinidade. Logo, não há possibilidade de superação das múltiplas violências sofridas nem por esses sujeitos, nem pelos sujeitos subalternizados sem que haja questionamento da forma como a masculinidade se organizou historicamente.
A despeito desse cenário catastrófico, observa-se um esforço no sentido de propor mudanças. Se por um lado, ainda há na cultura comportamentos, de forma muito acentuada, discursos e ações violentos que reforçam o espírito de uma masculinidade machista nos homens e nas mulheres, ou seja, indícios que acobertam a perpetuação de um comportamento tradicional da masculinidade, por outro, há movimentos silenciosos e por vezes isolados. Aqui e ali, de maneira silenciosa e isolada, surgem grupos reflexivos de homens, descontentes e insatisfeitos com esse padrão hegemônico machista e que, procuram levantarem-se do leito de Procusto, ressignificar a masculinidade e entender que outras masculinidades são possíveis, urgentes e necessárias!!!
Esses homens incomodados procuram tensionar o padrão clássico propondo a ressignificação da masculinidade. Há uma tensão que atravessa o imaginário social suscitando considerar a possibilidade não mais de pensar a unilateralidade do padrão masculino no singular e acolher a pluralidade de identidades masculinas.
Que novos modos de ser homem apontam para a desconstrução da masculinidade emergem na cena contemporânea? É possível ser homem sem a máscara da heteronormatividade, do machismo, do poder, da violência, da dominação? Se a resposta para as questões anteriores é sim, quais os caminhos possíveis para reimaginar a masculinidade no contemporâneo?
Nos solidarizamos com todas as mulheres que foram e ainda são vítimas desse sistema patriarcal, machista misógino e violento. Nós homens, precisamos cuidar e estar alertas e atento para não sermos engolidos pela cultura da banalidade do mal.
Ao lado das mulheres queremos imaginar que outras masculinidades, andróginas, integrativas, decoloniais são possíveis, urgentes e necessárias.
Como enfrentar a esse desafio? É sempre oportuno recorrer aos poetas.
“Faz com o coração o contrário do que fazes com o corpo: despe-o.
Quanto mais nu, mais ele encontrará o único agasalho possível: um outro coração.”
Mia Couto – “A chuva pasmada”
Jorge Miklos – Professor e pesquisador no Programa de Pós-graduação em Comunicação da UNIP
1 Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um grande intérprete do nosso tempo. Inventou o conceito de “modernidade liquida” para se referir à nossa época. Peregrinou por diversas questões contemporâneas: amor, política, comunidade, trabalho, consumo, identidade, tempo, condição humana. Publicou mais 50 livros dos quais mais de 30 já foram traduzidos no Brasil pela Zahar Editora. Entre eles: Modernidade Liquida (2000) Amor Líquido (2003) Vida para Consumo (2007) Tempos Líquidos (2007) Vida Líquida (2005). Para Bauman viver na modernidade líquida “é como patinar num lago congelado. É preciso sempre acelerar, caso contrário, ocorre a queda. Ao mesmo tempo, está presente a todo o momento a sensação de que o chão vai rachar sob nossos pés.” (BAUMAN, Vida Líquida, 2007, p. 13).
2 A antológica expressão “Tudo que é Sólido desmancha no ar” de autoria de Karl Marx e Friedrich Engels e é usada para se referir ao caráter de permanente transformação da sociedade capitalista. “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista – 1848. Porto Alegre: L&PM, 2007.)
3 Segundo Priscila Magossi: “Nessa perspectiva, a reprogramação refere-se à ação e/ou ao resultado de modificar estímulos vigentes de qualquer ordem em prol de uma finalidade nova e distinta por motivações fundamentalmente políticas e econômicas de oligopolópios ciberculturais. Em sentido amplo, a reprogramação refere-se a uma alteração dramática, de porte corrosivo, potencialmente irreversível, no imaginário do tecido social, em escala planetária. Trata-se de um processo psicossocial, online e off-line, individual e coletivo, de domesticação do imaginário cujo ciclo é composto pela reprogramação algorítmica (elaborada por feeds algorítmicos hipercustomizados de conteúdo) e pela reprogramação ideológica do imaginário (mediatizada pelo cinismo publicitário empresarial). Para enfatizar, o processo é inextricável entre ambas as vertentes. Nesse horizonte, a reprogramação algorítmica pressupõe (e também conduz à) reprogramação ideológica do imaginário, apresentando-se como novo estágio (mórbido) econômico e social do desenvolvimento capitalista, sustentado a partir da tecnologia (plataformas digitais que promovem interação em tempo real ou não), alimentado pela primazia da imagem (simulacro e hiper-realidade) sobre o objeto (necessidade de pertencimento). No ciberespaço, a reprogramação é propositalmente provocada por imagens, vídeos e textos, gerados por algoritmos e distribuídos em feeds hipercustomizados, intencionalmente fabricados com o objetivo de limitar a potência do imaginário, transformando-o em mero flagelo domesticável, reprodutor da ideologia dominante. Em síntese, a reprogramação é compreendida pela mudança no comportamento e na percepção do indivíduo. Para tanto, é preciso causar uma espécie de curto-circuito na capacidade imaginativa do usuário, impedindo-o de produzir diferentes representações simbólicas de determinada. Sendo assim, A reprogramação ideológica refere-se ao processo de redução da potência do imaginário à reprodução da ideologia digital hegemônica, isto é, àquela programada por algoritmos e que circula na rede. Ressalta-se que a reprogramação algorítmica não se refere apenas à fabricação de feeds hipercustomizados. Mas sim, à produção, à circulação e à manutenção de um esquema ideológico que fabrica um modelo de mundo no qual a lógica predominante é a do lucro em oposição ao sentido.”
4 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
5 João Freire Filho no artigo: A Felicidade na era da sua reprodutibilidade científica: construindo pessoas cronicamente felizes, publicado no livro: Ser Feliz Hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
6 CAVALHEIRO, F. Metanoia e história: conflitos e rupturas da meia-idade. In MONTEIRO, D. M. R. (org). Metanoia e meia-idade: trevas e luz. São Paulo: Paulus, 2008.
7 SABINO, Fernando. O encontro marcado. Rio de Janeiro: Record, 1981.
8 BAUMAN, Zigmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria: tradução Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro:Zahar, 2008.