O Desespero por Realidade
- setembro 23, 2024
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"Redes sociais são uma armadilha", disse Zygmunt Bauman, ao se referir a irrealidade e desintegração da personalidade coletiva e a exacerbação de falsa interioridade (vazios).
"Redes sociais são uma armadilha", disse Zygmunt Bauman, ao se referir a irrealidade e desintegração da personalidade coletiva e a exacerbação de falsa interioridade (vazios).
Alex Delouya
São Paulo, 22/09/2024
3 Minutos.
Há anos, a antropóloga e ensaísta Paula Sibilia vem se dedicando a um tema que gera em muitos de nós inquietações profundas. De que forma a nossa vida psíquica e social se alterou desde que a internet, as redes sociais e o mundo digital tomaram conta de tudo?
Para a autora, em seu livro O Show do Eu, cuja segunda edição foi publicada em 2016 pela editora Contraponto, o tema é extremamente complexo e multifacetado.
No entanto, no terreno daquilo que os psicólogos costumam chamar de “processo de produção de subjetividades”, um fato é bastante óbvio e relevante: hoje, expomos para fora nossa vida cotidiana de uma maneira provavelmente nunca antes vista, principalmente através das novas redes.
Porém, isso não surgiu com as chamadas BigTechs (os grandes conglomerados multinacionais ligados ao mundo digital), e Sibilia já se questionava sobre o assunto desde o início desse milênio.
Como conta no prefácio do livro originalmente publicado em 2008, tratava-se de pensar, ainda na época de emergência dos blogs pessoais, como estaria ocorrendo uma transformação da antiga noção de intimidade, que agora era combinada, paradoxalmente, com “a explícita vontade de tornar algo público”[¹].
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No intervalo de 2008 a 2016, a velocidade com que se desenvolveram os meios de comunicação digital e se popularizaram as redes sociais pareciam ao mesmo tempo confirmar o diagnóstico de “transbordamento das antigas fronteiras entre o público e o privado”. Bem como em trazer-lhe novas conotações, ensejando a necessidade de atualizar o texto original, fato que levou a sua reedição.
Dentre muitos dos pontos abordados no livro, a autora faz questão de chamar atenção para as transformações que as redes sociais teriam proporcionado no ato de narrar a própria vida. Como diversos pensadores assinalaram, de Walter Benjamin a Virginia Woolf, esse ato não se encerra nunca na mera “representação da realidade”.
Nesse sentido, compreender a forma predominante de narração em cada época é também compreender o tipo de sujeito que nela é formado. Ou, ao menos, a imagem que se faz desse sujeito. É compreender como se entrelaçam eu e vida a cada período.
Segundo Sibilia, o tempo da era da informação e das mídias digitais é caracterizado por uma grande expansão das narrativas biográficas. Portanto, um processo no qual pode-se identificar uma verdadeira demanda social por “realidade” e pelo consumo das esferas que constituem a intimidade daquele que narra.
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São as banalidades da “vida cotidiana real” que vemos majoritariamente, por exemplo, nos stories do Instagram, que ficam disponíveis por apenas 24h.
O sujeito dessas narrativas também sofreu um deslocamento, Não se trata mais da atentar para a história de vida das “grandes personagens”, como figuras ilustres dos campos histórico, artístico ou social, mas mais propriamente para a vida de “sujeitos comuns”. Basta pensar o sucesso de influenciadores que, antes de influenciadores, não eram nada de especial.
Se não forem “sujeitos comuns”, o enfoque é na “vida comum” das figuras extraordinárias. Como, por exemplo, as fofocas envolvendo traições e aventuras amorosas de artistas da música e do cinema, o interesse público pela dieta do Cristiano Ronaldo, dentre muitos outros possíveis.
Como diz a autora: “Uma intensa ‘fome de realidade” tem eclodido nos últimos anos, um apetite voraz que incita tanto à exibição como ao consumo de vidas alheias e reais”[²].
Há assim, um processo de espetacularização tanto do eu quanto da vida, tornados objetos de exteriorização ininterrupta através das redes sociais. Ao mesmo tempo buscando uma espécie de valorização ou legitimação alheia. Vide, por exemplo, os likes e outros processos de interatividade que são criados a partir dessa exposição, isto é, a partir da postagem.
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Da maneira como colocado pela autora, fica claro que tais processos não são entendidos apenas como fruto das tecnologias digitais. Eles são transformações subjetivas e sociais profundas, reciprocamente geradas por e geradoras desses meios de exposição. Assim, à “fome de realidade” a autora liga também o boom dos reality shows que ocorreu a partir da década de 2010.
Exemplo mais nítido da “fome de realidade” é a rede social BeReal, criada em 2019 pelos franceses Alexis Barreyat e Kévin Perreau. Inexistente na época em que o livro em questão foi escrito, o aplicativo é uma resposta intensificada das empresas de tecnologia a essa demanda pelo real. A startup se popularizou a partir de 2022, se tornando o aplicativo mais baixado da loja virtual App Store e atraindo novos investidores. Em abril de 2023 já contava com mais de 4 milhões de seguidores.
Nela, os usuários participam através da postagem de uma imagem por dia das duas câmeras, frontal e traseira do aparelho, produzida apenas no intervalo de tempo determinado pela plataforma. Assim, todo dia o telefone toca em um horário específico e usuário deve postar a foto naquele momento. Ele só poderá ver a dos demais participantes naquele dia se tiver também se exposto na rede. A vigilância anônima é vetada.
Como o nome diz (Seja real! em inglês), o aplicativo busca vender o consumo da realidade “mais real possível” de cada um de seus usuários, alicerçando essa veracidade na própria ausência de escolha que eles possuem quanto ao momento ou à frequência da captura e postagem.
Desespero por Realidade
Hoje já não é lá uma grande novidade o fato de que todas as grandes plataformas funcionam através da venda (para outras empresas) da nossa atenção, ou seja, do nosso tempo.
Tempo que é, para as empresas, o mais lucrativo possível, dado que os anúncios são programados com base nos dados pessoais dos usuários, traficados pelas megacorporações.
Tal fato fez alguns, como o filósofo Franco “Bifo” Berardi, ressaltarem a transformação econômica em jogo: “O capital deixou de alugar a força de trabalho das pessoas, mas compra ‘pacotes de tempo’, separados de seus proprietários ocasionais e intercambiáveis.”[³].
O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em recente edição da revista Carta Capital, cita o italiano e aprofunda o raciocínio: “Hoje, as plataformas invadem todos os espaços, outrora ocupados pelo comércio, pela finança, pelos serviços, pela publicidade e pela produção. O capitalismo das plataformas transforma a possibilidade do tempo livre na ampliação das horas trabalhadas (…)”.
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Ou seja, não basta trabalhar todos os dias: o sujeito ainda entrega seu tempo para a geração de riqueza por parte das redes, enquanto consome conteúdo.
Mas o aplicativo BeReal mostra seu perverso ineditismo precisamente aí: ele busca colonizar aquela camada do tempo em que o sujeito não está voltado para o celular, mas precisa voltar-se à ele a fim de participar do jogo expositivo e interativo com outras pessoas.
Ele vende uma ideia de mais-realidade, que ultrapassaria a dose de “falsidade” presente nas outras redes como Twitter, Instagram e Facebook, uma vez que estas ainda permitiriam uma espécie de manipulação da representação maior por parte dos seus produtores. Em um de seus vídeos propaganda, a sedução do imperativo BeReal propõe uma subversão: “E se as redes sociais fossem diferentes disso? Descubra BeReal! Sem filtros, sem likes, sem seguidores, sem bobagens, sem anúncios”.
A matéria da CNN de 2023 sobre a novidade representada pelo BeReal deixa o intuito o mais claro possível: “A ideia é mostrar a vida real, muito além do que é simplesmente instagramável.”[4]. Autenticidade sem barreiras e fronteiras, lembrando o “transbordamento entre o público e o privado” da antropóloga Paula Sibilia.
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Muito recentemente, o BeReal mudou as regras do jogo interativo. Agora, o atraso é tolerado, mas você tem acesso a menos fotos de outros perfis se tirar a foto fora do tempo marcado, em um esquema de recompensas. O princípio, contudo, segue o mesmo.
Como bem lembra a autora em O Show do Eu, o apego pela realidade também não surgiu no século XXI. Já nos anos 30, Walter Benjamin, filósofo da Escola de Frankfurt, declarava “a morte do narrador”. Ela a associou a prevalência que tinham na sociedade industrial as informações sobre as narrativas, associadas ao trabalho pré-moderno. Valores como a veracidade são inflacionados em detrimento da ficção. Velocidade e curta existência caracterizam o mundo das informações, bem como do trabalho industrial, diferentemente do tempo das narrativas ficcionais.
O fenômeno ganha um contorno ainda mais intenso em nosso mundo de supremacia das redes sociais. Estas, em sua alta portabilidade e interatividade, aumentaram a conexão dos indivíduos à rede veloz de comunicações e individualizaram os meios de acesso à eles.
Agora, com os novos tipos de mídias que não são apenas eletrônicas mas também digitais e interativas – e que abandonam o clássico esquema de um emissor para muitos receptores -, essa dupla tendência parece se aprofundar: cada vez mais privatização individual, embora cada vez menos refúgio na própria interioridade.[5]
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Assim, a “fome de realidade” e a exteriorização de todos os aspectos do cotidiano são dois lados de um mesmo fenômeno, que tem como consequência essa ausência de interioridade.
A velocidade do antigo Twitter, que virou X de Elon Musk, convidava a isso. Pensei, postei. Sem parede entre o eu emissor e a arena panóptica de exposição.
E os sintomas são muitos, e conhecidos. Desde a angústia por uma realidade que parece escapar, se não é registrada pela câmera fotográfica (visível na multidão de celulares que protagoniza todo grande show). Até a comida que parece que não será digerida se não for instagramada, ou o pensamento que parece que nunca existiu se não foi compartilhado.
Não parece haver das empresas (como nunca houve no desenvolvimento da sociedade burguesa) uma disposição a “cair na real” e retroceder um passo sequer em seu avanço colonizador sobre os dados, o tempo, a existência e o próprio pensamento. O preço pago por não propor (ou sequer vislumbrar) alternativas a essa distopia talvez seja alto. E a “perda de interioridade”, conforme caracterizada por Sibilia, talvez seja só um pedacinho dele.
Alex Delouya – Sociólogo USP
Referências
[1] O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. Paula Sibilia, Contraponto, 2016, p.9.
[2] Idem, p.61.
[3] Senhor Feudal: Musk é um suserano das plataformas de negociação digital. Carta Capital nº1327. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/tecnologia/senhor-feudal/
[4] BeReal: entenda o que é e como usar essa nova tendência de app. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/be-real/
[5] O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. Paula Sibilia, 2016, Contraponto, p.77.