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Racismo, infância e escola: a quem serve este debate?

4 MIN DE LEITURA

A temática racismo me chamou a atenção em 2010 quando trabalhei com assessoria pedagógica e formação de professora de creches e EMEIs em Osasco.

Sou professora da rede estadual de São Paulo desde 2007 da disciplina de Sociologia e passei por vários segmentos na área da educação (professora de Ensino fundamental e médio, o trabalhei com adolescentes na Fundação Casa, como formadora de professores e coordenadores na Dir.de Ensino de Osasco, e atualmente como formadora de gestores escolares e educacionais em um programa de alcance nacional que visa melhorias na educação de diversos municípios pelo Brasil).

A partir deste momento percebi que as crianças negras recebiam um tratamento diferenciado das professoras, sobretudo quando envolvia o trato com os cabelos crespos (que eram penteados sistemática e dolorosamente nos finais da tarde, antes da mãe chegar para buscar).

Todas as crianças (brancas e negras) passaram por este ritual, porém, as negras sem dúvida sofriam muito mais com a experiência, pois, de acordo com as normas padrões das professoras e da cultura escolar, crianças negras de cabelo crespo deveriam se enquadrar nas normas da branquitude.

Ainda que as professoras, coordenadoras não falassem sobre isso comigo de maneira explicita isso estava dado nestes momentos e em tantos outros. Eu, enquanto mulher, professora e pesquisadora branca também só fui me atentar a isso uma vez que meu olhar foi refinado para tal, pois, nunca sofri esse tipo de agressão na minha vida pessoal. Por isso é importante um refinamento do olhar (que passa por um letramento racial).

Partindo deste cenário, desenvolvi uma dissertação de mestrado concluída no ano de 2016 na Faculdade de Educação da USP dentro de uma escola pública na cidade de São Paulo, com crianças de 4 e 5 anos.

Busquei compreender como as crianças lidam com o racismo e utilizei os desenhos como artefatos culturais para aproximar desta realidade. Para tanto, realizei um trabalho de observação que durou 18 meses, cujo alguns resultados compartilho neste material.

Desenvolvimento – Analisar as representações sobre negros e negras encontradas em desenhos elaborados por crianças da educação infantil, pode indicar que diversos elementos fundamentais para o debate étnico racial, este para além das minhas expectativas, extrapolavam as barreiras das representações gráficas – apontando para outros caminhos como o que diz respeito à relação entre as crianças, as quais exibem pontos de vista e maneiras de compreender e expressar o que é ser negro e negra, que transpõem os traçados deixados sobre papel; de como os cabelos possuem uma representação importante dentro e fora dos traçados gráficos; e como a atuação da escola e da professora da turma (que era uma professora negra e ativa dentro do movimento negro) pesquisada andavam em dissonância, quando o assunto tratava de questões étnico-raciais.

Hair - black - Cabelos - belezas - Identidades.
foto unsplash

A temática dos cabelos foi uma das questões fundamentais, sobretudo para as meninas. Tanto nas imagens gráficas, quanto na relação entre elas, nas brincadeiras com seus pares e na relação com adultas e adultos do espaço.

Este elemento nos mostrava com nitidez que seria um dos mais importantes ícones no entendimento acerca do que as crianças compreendiam sobre questões étnico-raciais, estando em muitos momentos no centro das discussões e das observações do trabalho de campo.

Outra questão importante que aparece de maneira constante é o não preenchimento da cor da pele nos desenhos coletados. Isso pode inferir que para as crianças não é necessário pintar a cor da pele em seus desenhos, por acreditarem que a cor já está ali subentendida – o branco – pois o próprio papel branco já é o preenchimento da cor da pele nos desenhos de uma sociedade que se branqueia socialmente.

Este debate sobre a suposta neutralidade do branco está presente nos estudos sobre branquitude (como já citado acima), e que se referem, essencialmente, ao imenso peso social implícito de que brancos não pertencem a alguma raça, mas são o padrão a ser seguido.

Os desenhos estão em conjugação com as histórias contadas pelas crianças ao realizá-los, portanto, observei em diversas vezes as mesmas não dando importância a pintar a cor da pele, ou quando queriam fazê-lo, utilizavam o famoso “lápis cor de pele” para o preenchimento.

A cor da pele e o cabelo revelam-se como elementos significativos ao tocante da pesquisa. 192 desenhos foram coletados dos quais 92 trazem a temática cabelos lisos e apenas 3 contém preenchimento da cor da pele em marrom. Estes números indicam que não são apenas coincidências quando as crianças fazem, majoritariamente, traçados de cabelos lisos em seus desenhos ou não preenchem a cor de pele.

As conversas sobre os cabelos com as meninas se toraram tão importantes para pensar e escrever sobre a questão étnico-racial que não poderiam passar “em branco”, mereceram um capítulo inteiro para que a questão fosse problematizada de modo mais aprofundado.

Os desenhos, compreendidos como artefatos culturais, indicaram de maneira incisiva como as representações de negras e negros ainda merecem mais atenção sejam em posteriores pesquisas ou com o olhar atento de professoras e professores em suas práticas cotidianas, sendo necessário sua inclusão nas escolas de educação infantil para serem pensadas de maneira transversal e cotidiana. Apenas se eleita pauta prioritária podemos começar a pensar em superar o caráter racista de tão importante instituição.

Embora muitos pensem que discutir questões étnico-raciais no Brasil esteja superado (devido à persistência do mito da democracia racial na atualidade), realizar uma pesquisa cuja proposta investigativa esteve centrada nas crianças de 4 e 5 evidenciou que questões étnico-raciais não se constituíram como temática relevante e generalizada na EMEI pesquisada: seja nas relações entre elas, ou ainda na observação sobre o que elas desenham.

Modificar esse quadro atual, no Brasil, torna-se indispensável pelo racismo estrutural com o qual convivemos diariamente.

Neste trabalho diversas questões se entrelaçam, e algumas delas ganharam destaque pela forma em que aparecem ao longo desta dissertação.

De forma mais evidenciada citamos três, a saber, o racismo institucional, o qual se reflete nas representações dos desenhos das crianças; o modo como o cabelo crespo das crianças negras são compreendidos dentro e fora da turma pesquisada e a maneira como a Lei 10.639\ 2003 foi, ou não, efetivada dentro da EMEI.

As questões colocadas neste estudo remetem, portanto, ao tripé (patriarcal, racista e capitalista) no qual nossa sociedade foi fundada e cuja ordem atual está assente.

Numa tentativa de subverter esta ordem essencialmente desigual, ao longo da pesquisa, filiei-me às lógicas que buscam a contestação e superação de tais estruturas. As crianças foram ouvidas como informantes legítimas, a partir das quais seria possível identificar como a socialização infantil acontece dentro de uma sociedade racista, patriarcal e capitalista.

As crianças, sujeitos que oficialmente não estão inseridas no sistema capitalista de maneira rígida (por não produzirem), além de estarem sob cuidados constantes – na maioria das vezes de mulheres, sejam elas mães e no caso do ambiente escolar de professoras mulheres e especificamente da turma pesquisada professoras negras.

As práticas pedagógicas afrocentradas realizadas pela professora da turma observada se constituem em uma pedagogia antirracista que no contexto da EMEI é também solitária, uma vez que, apenas ela e a professora do período da manhã estavam atentas e comprometidas com a efetivação da Lei 10.639/03 no cotidiano escolar.

Desta maneira, ela não trabalha apenas em datas especiais dedicadas ao combate ao racismo (como por exemplo o 20 de novembro), e sim em todos os dias, inclusive levando sua biblioteca particular para dentro da sala.

A figura de professora heroína, se por um lado, mostra o quanto iniciativas simples e individuais podem questionar/modificar dinâmicas fundadas em preconceitos atávicos, por outro, denota que a lei não é efetiva, pois não se tornou (ainda) norma, diretriz geral na escola inteira.

Por isso, é importante que nossa análise não se limite apenas a um tom celebrativo dessas iniciativas criativas e transformadoras de poucos professores, pois, no fim das contas, tal viés responsabiliza única e individualmente os professores no combate ao racismo no âmbito escolar, tanto no que se refere aos conteúdos e também a socialização de crianças negras e brancas.

Ora, se a escola se constituiu historicamente como uma instituição racista e na qual apenas a epistemologia eurocêntrica era e é valorizada, cabe também à escola combater o racismo institucional e contribuir ativamente na formação de cidadãos. Não é justo, nem tampouco eficaz, que a responsabilidade dessas mudanças profundas dependam unicamente da ação de docentes conscientes e engajados na luta antirracista.

No cotidiano escolar mais amplo, ou seja, no restante do corpo docente e discente, o diretor e funcionários da EMEI pesquisada e não encontramos indícios de efetivação da proposta da referida lei. Neste sentido, no contexto da não aplicação da lei 10.639\2003 na unidade escolar, mesmo iniciativas isoladas como da professora pesquisada são prejudicadas.

O racismo institucional prejudica iniciativas individuais, pois estas acabam tornando-se “ilhas” antirracistas numa instituição racista. Como o exemplo de uma menina negra que foi de cabelo solto para a escola e passou por uma situação constrangedora: após conseguir o respeito a seus cabelos crespos, dentro da turma, a menina (ao pisar para fora da sala) foi hostilizada por funcionárias e pelas outras crianças.

Assim, esta “ilha” que se faz presente na turma da sala pesquisada, tende a submergir aos poucos, desaparecendo eventualmente, pois, a falta de apoio e incentivo por parte da gestão escolar tende a gerar desânimo e frustração ou mesmo um certo isolamento no que se refere à relação da professora com o restante do corpo docente porque, na maioria das vezes, ela é vista como uma das “professoras chatas”, que só falam do mesmo assunto.

Vale ressaltar que esse aspecto nada mais é do que outro sintoma de que o problema do racismo não é visto como um problema coletivo o qual deveria interessar a toda comunidade escolar.

Considerando que atualmente existe farto material que auxiliam os profissionais da educação no processo de seu próprio letramento racial e indicam variadas estratégias para a efetivação da Lei 10.639, concluímos que não é por falta de suporte pedagógico ou acesso à conteúdos concernentes à África e ao afro-brasileiro.

No âmbito da escola investigada, constatamos que a omissão dos gestores da EMEI foi a principal causa para que a temática étnico-racial fosse escamoteada naquela comunidade escolar.

Photo by Jurien Huggins on Unsplash

No tocante à infância esse estudo também desvendou certas formas de compreender o mundo a partir de uma suposta neutralidade que, por muitas vezes, pautam tanto a ideia de infância pura, que não está conectada ao que acontece na sociedade, quanto para perceber que o racismo institucional pode impactar e condicionar a vida social desde muito cedo.

Impondo lugares a serem ocupados hierarquicamente por crianças e adultos, negros e brancos. Mesmo assim, as crianças buscam, no seu dia a dia, saídas para compreender tal realidade, transgridem e reagem de diversas maneiras quando o mundo oferece espelhos nos quais muitas não conseguem se enxergar.

A partir do uso de certos termos, de comportamentos que apontam para padrões estéticos únicos que aprisionam e violentam crianças cujos processos de subjetividade a partir de uma auto-imagem desvalorizada considerada errada, falhada são impactados de modo violento e cruel desde a primeira infância.

Embora atualmente possamos ver movimentações em coletivos de mulheres negras que têm promovido deslocamentos no tocante à compreensão do que é ser mulher negra no Brasil, o caso da EMEI analisada é um indício de que tal compreensão ainda não perpassa as diferentes esferas e setores sociais brasileiros a ponto de atingir as meninas da referida escola.

Dentre diversos desenhos coletados e conversas com as crianças foi possível compreender que ainda não existe uma representatividade da figura negra que seja satisfatória para meninos e meninas de 4 e 5 anos.

Este trabalho que valoriza a observação, o olhar e os relatos das crianças como informantes legítimos para tecer o panorama de como as questões étnico-raciais estão sendo tratadas dentro da instituição educacional, revela que para além de boas práticas exercidas por docentes como a professora supracitada, elas não devem ser isoladas da instituição, pois não consolidam, a Lei 10.639\ 2003 na primeira etapa da educação básica, falhando, portanto, na superação do racismo brasileiro.

Considerações finais – Diante deste cenário, é importante pararmos para pensar a quais atores sociais dentro da escola interessam pensar sobre questões étnico raciais? Professoras e professores negros (apenas) necessariamente precisam dar conta desta temática de maneira isolada?

Qual é a parcela de corresponsabilidade de pessoas brancas (sobretudo que estão a frente da gestão escolar e em espaços formativos) de colocarem em pauta esta temática dentro das salas de aula, nos espaços formativos junto a professoras e professores e na abordagem com a comunidade escolar? Para além de uma educação inclusiva é preciso pensar em uma educação antirracista, pois, este é um problema de toda a sociedade: de quem pratica e de quem sofre o racismo.

Minha experiência (como professora, gestora e formadora de gestores escolares) que esta ainda é uma temática extremamente ‘invisibilizada’ e de menor importância ou que só interessa a quem sofre com isso.

A pesquisa citada neste artigo foi realizada entre os anos de 2013 e 2014, uma época em que havia um outro contexto político no âmbito municipal, estadual e federal. O cenário político atual indica uma intenção de deslegitimar no debate étnico-racial, porém, como houve avanços até o presente momento, retroceder talvez não seja uma opção viável.

Ana Carolina B.A. Farias – Mestra em Sociologia pela USP – Universidade de São Paulo Professora do Ensino Médio da Rede Pública de São Paulo

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Redação

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