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O lugar da alimentação temática no ensino de gêneros discursivos

Começo a responder a essa indagação tomando a voz dos autores do glossário do curso “Sequência Didática: aprendendo por meio de resenhas”, especificamente para apresentar o verbete “alimentação temática”

Patrícia Calheta

São Paulo, 29/07 de 2020

4 minutos

Há décadas, mais precisamente a partir de 1997/1998 com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, as propostas curriculares de todo o país vêm reafirmando a urgência de um trabalho no qual os gêneros discursivos sejam tomados como objetos de ensino; como unidades de reflexão, análise e apropriação por parte dos estudantes, questão agora enaltecida pelos dizeres da Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017). O lugar da alimentação temática no ensino de gêneros discursivos enseja esta discussão.

Se, por um lado, a noção de gênero discursivo parece estar mais bem internalizada pelos docentes, por outro, ainda carecem de maior aprofundamento as implicações para a prática educativa, especialmente no que se refere ao exercício efetivo da transposição didática baseado na articulação de práticas de linguagem em torno de um determinado gênero discursivo, assim como a progressão no ensino, ao longo dos anos de escolaridade.

A experiência como coordenadora pedagógica do curso virtual intitulado “Sequência Didática: aprendendo por meio de resenhas”, oferecido pelo Programa Escrevendo o Futuro, tem sido fundamental para investigar e analisar as dúvidas recorrentes de professores e gestores, especialmente de EFII e EM, atreladas a modos de favorecer um fazer sistemático, consistente e potente diante dos processos de ensino e de aprendizagem de gêneros do discurso.

Tomando a sequência didática (doravante, SD), tal qual definida por Joaquim Dolz e Bernard Schneuwly – na obra de referência dos estudos sobre a perspectiva enunciativa de linguagem e as contribuições para a prática em sala de aula intitulada “Gêneros Orais e Escritos na Escola” – como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (2004, p.97), pretende-se, com o curso, entre outros objetivos, levar os professores a vivenciar, então como estudantes, o passo a passo de uma SD.

Exatamente por promover esse exercício reflexivo intenso e diversificado, por meio de discussões em fóruns e realização de exercícios autoformativos e tarefas individuais, foi se tornando cada vez mais evidente a constatação de que mesmo conhecendo a SD como uma metodologia significativa para o ensino de gêneros discursivos, essa mesma clareza não se evidencia em formas de se compreender a relação entre os elementos de cada gênero, os objetivos e as especificidades das oficinas, visando à elaboração de um conjunto de propostas capaz de gerar resultados efetivos de aprendizagem.

Neste texto, não pretendo tratar do curso em sua totalidade e complexidade, nem mesmo das múltiplas revelações e conhecimentos construídos na relação profícua com a equipe de mediadores, mas entendo que tomá-lo como inspiração servirá para fomentar a importância e a pertinência de focarmos a presente reflexão em um dos aspectos ali contemplados, a saber, a alimentação temática.

Como a alimentação temática está presente na SD?

Começo a responder a essa indagação tomando a voz dos autores do glossário do curso “Sequência Didática: aprendendo por meio de resenhas”, especificamente para apresentar o verbete “alimentação temática”:

Num processo de produção textual, a alimentação temática corresponde aos procedimentos propostos por um docente, um material didático ou uma SD, para permitir ao aluno a construção de um repertório pertinente para a tarefa. Assim, se o que estiver em jogo for a produção de um artigo de opinião sobre cotas para minorias sociais na universidade, ler textos a respeito, assistir documentários e programas de entrevistas, organizar debates com especialistas etc. são estratégias de alimentação temática.

Dito de outra forma, a alimentação temática refere-se à proposição de diferentes atividades em sala de aula, com o objetivo de favorecer a ampla reflexão sobre um determinado assunto, de modo a potencializar a condição de os estudantes “terem o que dizer”.

É importante compreender que o trabalho envolvido na alimentação temática não deve se limitar ao gênero foco de uma SD, ou seja, ainda que o objetivo seja favorecer o aprendizado de um gênero discursivo como o artigo de opinião, (exemplo citado acima) o planejamento docente deve contemplar a seleção criteriosa de exemplares de textos deste e de outros gêneros discursivos, tomando como referência a questão a ser tratada.

Então, a variedade de gêneros na escolha das atividades de alimentação temática torna-se elemento-chave para a mais completa e consistente apreensão de sentidos sobre determinado assunto em estudo.

Nessa direção, cabe também salientar que a alimentação temática pode ser desenvolvida ao longo de uma SD, especialmente após a produção da versão inicial do texto, momento marcado pela investigação dos saberes prévios de cada estudante sobre o gênero em destaque.

Em outras palavras, o caminho reflexivo proposto pelo planejamento de oficinas (módulos), atreladas às demandas e às necessidades da turma reveladas por essa produção inicial de natureza diagnóstica, contribuirá para a ampliação do repertório de conhecimentos não apenas voltados ao gênero central, mas também aos assuntos por ele veiculados, otimizando a condição de análise e reflexão sobre o que dizer e o modo de dizer daquele gênero discursivo focalizado na SD.

Para ficar mais claro, recorro ao esquema da SD, tal qual proposto pelos autores Dolz e Schneuwly (2004, p.98):

Do lado esquerdo, está a apresentação da situação, composta tanto pela explicitação da proposta – que pode ser realizada por meio de uma roda de conversa, na qual os estudantes trocam informações sobre o que conhecem acerca da situação de produção do gênero a ser explorado na SD (o que é, qual o objetivo, a quem se destina, onde circula e como se escreve) – quanto pela leitura de alguns exemplares do gênero, a fim de promover a aproximação e maior clareza a respeito do trabalho a ser realizado.

Nesse momento, busca-se investigar os conhecimentos prévios da turma, de modo a “ajustar os óculos” dos estudantes para a tarefa da produção inicial.

Seguindo o esquema, evidencia-se a produção da versão inicial do texto, realizada em função dos conhecimentos já construídos por cada aluno(a). Tal elaboração, nas palavras dos autores “(…) permite ao professor avaliar as capacidades já adquiridas e ajustar as atividades e os exercícios previstos na sequência às possibilidades e dificuldades reais de uma turma” (op cit, p.98).

No centro da SD, evidencia-se o conjunto das oficinas ou módulos a serem desenvolvidos, de modo sistemático e com ganhos de complexidade, de acordo com as necessidades de aprendizado. A seleção de oficinas/módulos, tal qual deve ocorrer nas sequências didáticas propostas nos Cadernos do Professor, depende, portanto, dos aspectos revelados pela análise das produções iniciais como práticas e capacidades a serem desenvolvidas ou aprimoradas.

Por fim, em decorrência de todo o investimento reflexivo vivenciado nos módulos, tem-se a produção final, etapa em que cada estudante colocará em prática todo o aprendizado adquirido. Assim, ao analisar o conjunto de textos da turma, o(a) professor(a) poderá elaborar propostas de aprimoramento textual, voltadas à revisão e à reescrita, com vistas à publicização dos textos.

Ainda que apresentado em termos gerais, o esquema da SD favorece o entendimento de que a alimentação temática está intimamente vinculada ao desenvolvimento de atividades em diferentes módulos/oficinas que permitem ampliar o repertório de conhecimentos da turma, contando com a seleção criteriosa do(a) docente de exemplares de texto significativos – do gênero e de outros gêneros, vinculados pelo assunto em foco – para a tarefa da produção final.

Assim, o trabalho docente atrelado ao planejamento e ao desenvolvimento das diferentes oficinas de composição da SD deve contemplar um lugar privilegiado para a exploração e a análise de textos que, norteados pelo critério do assunto comum a ser tratado em cada produção, potencializará a condição de cada estudante compor seus dizeres de forma autoral, contando com um denso repertório de vozes e modos de dizer.

De que forma trabalhar para a ampla alimentação temática?

Variados “produtos olímpicos” vinculados ao trabalho com a alimentação temática têm sido disponibilizados no Portal Escrevendo o Futuro. Como forma de dar visibilidade a alguns deles e ampliar leituras e reflexões, serão destacados a seguir alguns fragmentos de textos, pertencentes a três diferentes produtos do Programa:

1- Textos – “Pergunte à Olímpia”

A professora Olímpia, que desde 2013 tem se dedicado a responder às dúvidas docentes sobre o ensino da leitura e da escrita, já elegeu a alimentação temática como centro de suas reflexões em diferentes textos.

O primeiro a receber destaque intitula-se A importância da alimentação temática, tomada pelo enfoque ao tema do Concurso de Textos da Olimpíada “o lugar onde vivo”:

⇒   O que é? – de forma didática, podemos entender a alimentação temática como um conjunto de atividades que tem como objetivo favorecer a construção de um repertório pertinente ao que se quer escrever. Em outras palavras, fazer esse trabalho significa envolver os alunos em propostas que ampliem o olhar para o tema, no caso do nosso Concurso, “O lugar onde vivo”, de forma que eles possam, por meio da participação em diferentes práticas, selecionar o assunto a ser explorado na produção do texto.

Aqui, vale destacar um investimento reflexivo na relação entre tema e assunto. Explico melhor: quando pensamos em um diário íntimo, o tema é o cotidiano; porém, o assunto, o tópico específico tratado em cada dia, será diferente, não é mesmo? Esse raciocínio vale para nossa Olimpíada: com base no tema “O lugar onde vivo”, os alunos são convidados a pensar sobre os diferentes assuntos que cercam a rotina da cidade, da escola, da rua onde mora, com o objetivo de ajustar os óculos para o foco específico que deseja tratar no texto escrito.

⇒   Para quê? –

Alguns exemplos dessas práticas: a observação, a escuta de diferentes textos orais (entrevistas, debates, documentários, selecionados de acordo com o gênero a ser ensinado), rodas de conversa e leitura de vários exemplares do gênero, assim como de outros gêneros que possam auxiliar na investigação mais específica de cada assunto.

Em síntese, evidencia-se a condição de se desenvolver um trabalho a partir da ideia de alimentação temática atrelada ao tema do Concurso de textos da Olimpíada, “o lugar onde vivo”, de forma a proporcionar uma investigação dos alunos acerca do seu entorno – escola, casa, bairro, cidade – o que promove a eleição de um assunto a ser focalizado na produção.

Nesse sentido, a exploração da relação entre tema, assunto e título tende a favorecer o ajuste do olhar de cada estudante, contribuindo não apenas para a produção de textos no contexto da Olimpíada, mas de futuras elaborações “pela vida”. Para tanto, diversas práticas podem ser apreciadas, cabendo ao docente planejar situações de investigação e análise permeadas por diferentes textos e gêneros, sendo todos aderentes ao assunto em foco.

Ainda sobre as contribuições da professora Olímpia, serão a seguir retratadas duas de cinco dicas presentes no texto Cinco dicas para a alimentação temática:

Dica 02

É importante lembrar que, ao elegermos a sequência didática (SD) como modalidade de organização do trabalho pedagógico, estamos diante da possibilidade de investir em um olhar processual para a avaliação, ou seja, cada oficina trabalhada pode/deve oferecer ao professor a condição de apreciar os efeitos reflexivos nas atividades dos alunos, o que tende a favorecer a tomada de decisão, em termos da necessidade de ampliar a discussão sobre um determinado foco de análise, ainda antes de seguir para a próxima oficina.

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Pensando na alimentação temática, isso significa que a etapa/oficina da SD planejada para esse trabalho deve contemplar momentos de avaliação, especialmente voltados à análise do professor de como os alunos estão articulando cada texto estudado às potenciais informações para a produção de seu próprio texto.

Dica 03

No decorrer do trabalho sobre alimentação temática, vale a pena apostar na sistematização do conhecimento, elegendo estratégias para que os alunos possam ter clareza da essência da reflexão realizada, fazendo anotações, de modo a poder recorrer aos escritos, sempre que necessário.

Tais atividades podem envolver um levantamento de “achados e descobertas”, a partir de diferentes “modos de fazer”: oralmente, os alunos elencam descobertas, contando com o professor como escriba para, no final, todos registrarem no caderno; registros escritos em pequenos grupos, socializados e listados pelos próprios alunos, contando com a voz de toda a turma; levantamento iniciado pelo professor, em função de questões-chave, e complementado pelos alunos, entre outras possibilidades.

Essas duas dicas revelam a relação entre a alimentação temática, a SD e a avaliação discente, assim como o olhar para a sistematização. Tais reflexões apontam para formas de compor o fazer docente, com vistas a promover encontros efetivos dos estudantes com o conhecimento.

2- Revista – ”Na Ponta do Lápis”

Do conjunto de publicações da revista do Programa Escrevendo o Futuro, o destaque eleito para compor dizeres vinculados à alimentação temática é o texto da professora Ana Maria de Carvalho Luz, “O lugar onde vivo: um dedo de prosa sobre o tema”, publicado em julho de 2012 (NPL, número 20).

Ao destacar o tema do Concurso de Textos da Olimpíada, a autora presenteia o leitor com uma sensível reflexão, cuja introdução segue apresentada:

(…) São muitos e muitos os lugares que estão sendo olhados por quem vive e curte as dores e as delícias de viver onde vive. São cidades grandes, cidades pequenas, distritos, povoados, incluindo áreas urbanas e rurais, litorâneas ou não, o que compõe, no conjunto, um rico caleidoscópio de lugares do Brasil.

Muitos também são os olhares de crianças e adolescentes – e de seus professores – que se estão fazendo estrangeiros para ver mais e melhor o seu entorno. Para descobrir o existente, embora, às vezes, encoberto ou empanado pelo hábito de tanto olhar sem muito ver… Sobretudo, olhares ainda não contaminados por visões estereotipadas ou comprometidas com algum interesse que não o de olhar, ver e sentir o seu lugar.

Múltiplos ainda são os sentimentos e as sensações que estão sendo despertados – porque nunca expressos – ou inaugurados – porque nascidos do poder de provocação do tema. Em cada olhar, uma sensação que se configura em sentimento novo, disparado pela proposta de tema. Não necessariamente de amor ou admiração, mas, sobretudo, de pertencimento a um lugar “para chamar de seu”.

Finalmente, são incontáveis os diálogos. Pois não basta apenas olhar e ver, mas urge trocar olhares e visões com outros viventes do mesmo lugar. Assim, o tema engendra a necessidade de diálogos que cruzem e confrontem diversificados olhares. Para isso, não basta contentar-se com a própria voz interior em solilóquio, mas expandi-la e cruzá-la com outra voz, com outras vozes, para possibilitar o diálogo e as inevitáveis descobertas que essa rede de vozes pode promover.

A exploração do tema, ou alimentação temática, pode ser guiada por inúmeras questões dirigidas ao cenário físico e humano do lugar onde vivem os alunos. Quantas “cidades” diferentes habitam minha cidade? Em que faces diversas minha cidade se multiplica? Qual delas é sempre tomada como seu cartão-postal?

Quais delas se escondem em arredores nunca mostrados ao visitante? Quem são as pessoas que habitam os lugares diversos da minha cidade? O que elas fazem? O que é feito com elas? Como elas percebem ou veem o lugar onde vivem? Quem faz a minha cidade, no seu cotidiano? Quem fez a minha cidade? Como eu tenho visto a minha cidade? O que tenho deixado de ver na minha cidade? (…)

Mobilizar a turma para refletir sobre os dizeres da autora poderá ser um potente exercício, no sentido de iluminar questões envolvidas no trabalho com a alimentação temática, abrindo caminhos para que os estudantes possam compor suas trajetórias de aprendizagem de forma amplamente dialogada e significativa, retratando olhares distintos para realidades que os cercam.

3. Curso on-line – “Sequência didática: aprendendo por meio de resenhas”

Seguindo o percurso anteriormente apresentado da SD, o curso aposta no trabalho com a alimentação temática, logo após a produção da versão inicial da resenha, a caracterização por oposição a outros gêneros semelhantes e o estudo mais aprofundado das condições de produção, conteúdo temático e plano global.

Vale ressaltar que, no módulo 2, os cursistas são apresentados a três produtos culturais e devem selecionar um deles para a produção inicial. Assim, no final do módulo 4 (atividade 6), considerando tal escolha, são encaminhados para a tela abaixo (tela extraída do curso, na edição do 2o. semestre de 2019):

Diante dessa proposta, entre outras disponíveis no curso, os participantes terão condições de ampliar a rede de conhecimentos sobre o assunto a ser resenhado, de forma a compor escritos mais aderentes às características do gênero proposto, quando da produção da versão final, no módulo 7, que marca a finalização do percurso de formação ali desenvolvido.

Considerações Finais

Anunciar o lugar da alimentação temática no fazer docente com gêneros discursivos é, sem dúvida, convidar cada professor(a) e cada aluno(a) a se abrir para um amplo cenário de ideias, modos de dizer, de compor e de participar de práticas sociais orais, de leitura e de escrita.

Ancorado pela noção de gênero discursivo na sua relação com a SD, o fazer em sala de aula torna-se potencialmente vinculado à realidade e às demandas de nossos estudantes, dando lugar ao trabalho com textos – escritos, orais e multimodais – e assuntos diversificados de modo bastante aderente não apenas à diversidade de culturas, mas também de linguagens, consolidando a escola como espaço para as diferenças, para o trabalho com os multiletramentos e, especialmente, para a valorização da voz do outro de forma plural e articulada às práticas locais apreciadas por nossos estudantes e, por vezes, não valorizadas pela escola.

Assim compreendida, a alimentação temática torna-se forte aliada da proposta de formação de sujeitos que possam exercitar seu dizer de formas cada vez mais reflexivas, argumentativas, eficazes e autorais.

Patrícia Calheta – Portal Escrevendo o Futuro (Olimpíada da Língua Portuguesa)

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Redação

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