Brasileiros e a Vacina Antimalárica
No dia 06 de outubro, a OMS anunciou a aprovação da vacina mosquirix (RTS,S/AS01), primeiro imunizante para combater a malária. É uma conquista memorável e histórica para a humanidade, protagonizada pela Ciência que avançou com as pesquisas brasileiras feitas 30 anos atrás.
Campinas, 12/10 de 2021.
3 Minutos
Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, a malária, doença transmitida pela picada das fêmeas do mosquito Anopheles, que afeta pessoas negligenciadas em países de baixa renda, matou cerca de 409 mil pessoas. Desses, cerca de 94% dos casos ocorreram no continente africano, principalmente na África Subsaariana, sendo 67% crianças abaixo de 5 anos. Isso significa que uma criança abaixo de 5 anos morre de malária no planeta a cada 2 minutos. Isso é inadmissível.
A malária é combatida com o uso de medicamentos, através de terapias combinadas em que um dos medicamentos é o artesunato, derivado do produto natural artemisinina. O parasita da malária adquire resistência rapidamente e isso dificulta muito o desenvolvimento de medicamentos e vacinas.
No consórcio Molecules Initiative for Neglected Diseases (MINDI), em colaboração com a organização sem fins lucrativos, Medicines for Malaria Venture (MMV), nós temos como objetivo, desenvolver medicamentos baratos e acessíveis que possam ser administrados por via oral, sejam altamente eficazes e que tenham baixa toxicidade. Como um desafio extra, estamos trabalhando para desenvolver um tratamento de dose única para a malária.
No âmbito desta parceria, nós colaboramos com o objetivo da OMS, da ONU e de várias organizações sem fins lucrativos, que têm a meta audaciosa de erradicar a malária do planeta até 2040, reduzindo em 90% os casos até 2030. Para atingir esse objetivo, é preciso investir em testes de diagnóstico, desenvolver novas vacinas mais robustas, novos medicamentos mais eficazes, fortalecer os sistemas de vigilância e tratamento e esclarecer as populações afetadas.
Além de medicamentos, é fundamental manter o uso de redes de proteção (tipo mosquiteiros) com inseticida em volta das camas, pois nesta idade, as crianças se movimentam pouco, o que facilita as picadas pelos mosquitos. Para se alimentar, o mosquito pica as pessoas e, caso esteja infectado com o parasita, transmite a doença. Pessoas infectadas podem ser picadas por mosquitos não infectados, que ao se alimentar, ingerem o parasita e assim o ciclo se propaga. Em épocas de chuvas os casos aumentam.
![](https://aescolalegal.com.br/wp-content/uploads/2021/10/Laboratorio-de-pesquia-avan.jpg)
A mosquirix
Habemus uma primeira vacina contra a malária. No dia 06 de outubro, a OMS anunciou a aprovação da vacina mosquirix (RTS,S/AS01), primeiro imunizante para combater a malária. É uma conquista memorável e histórica para a humanidade, protagonizada pela Ciência.
A mosquirix levou cerca de 34 anos para ser desenvolvida. Desenvolvida pela farmacêutica britânica GlaxoSmithKline (GSK), a nova vacina combate o Plasmodium falciparum, um dos cinco parasitas que causam a malária e de longe, o mais letal.
Não será muito útil para combater a malária no Brasil, pois aqui, cerca de 90% dos casos são causados por outro parasita, o Plasmodium vivax, para o qual a mosquirix não apresenta eficácia.
Segundo dados do Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária (PNCM), o Brasil apresentou em 2018, 194,572 casos de malária, sendo cerca de 90% causados pelo Plasmodium vivax, menos letal. Houve uma pequena redução no número de casos em 2018 (157,454 casos), sendo que esses casos ocorrem em regiões de desmatamento e garimpo, nos estados do Norte e região Amazônica.
A mosquirix começou a ser desenvolvida em 1987, os ensaios clínicos de fase 3 foram concluídos em 2014 e em 2019 a vacina começou a ser aplicada no mundo real em um projeto-piloto no Quênia, Malawi e Gana. A vacina mostrou segurança e eficácia de aproximadamente 35% ao longo de 4 anos para um esquema de 4 doses em crianças de 5–17 meses. Os resultados do estudo de fase 3, duplo-cego, randomizando e controlado por placebo, envolvendo pouco mais de 15 mil crianças, foram publicados na revista médica The Lancet no dia 23/04/2015.
O estudo mostrou que a vacina é segura e apresenta eficácia em torno de 35% na prevenção de casos de malária e infecções mais severas (a eficácia varia entre 26-50% em bebês e crianças pequenas). A vacina precisa de 4 doses, que devem ser aplicadas, respectivamente, no quinto, sexto, sétimo e décimo oitavo mês de vida das crianças. Se considerarmos que são cerca de 270 mil mortes de crianças por ano causadas pela malária, reduzir em cerca de 35% significa salvar algo em torno de 95 mil vidas. Mas só ter a vacina não basta para atingir esse objetivo
![Brasileiros na vacina antimalérica](https://aescolalegal.com.br/wp-content/uploads/2021/10/Pesquisas-in-vitro-mais-d.jpg)
Contribuição brasileira
Esta é a primeira vacina aprovada para tratar doenças parasitárias em humanos e teve contribuição de dois pesquisadores brasileiros, ambos imunologistas, a professora Ruth Nussensweigh e o professor Victor Nussensweigh.
A professora Ruth nasceu na Áustria, mas veio ainda criança para o Brasil. Os dois cientistas deixaram o Brasil durante o regime militar e estavam morando nos Estados Unidos na década de 1960, quando realizaram contribuições fundamentais para o desenvolvimento da mosquirix.
A vacina usa plataforma baseada na combinação de uma proteína da superfície do parasita Plasmodium falciparum com outra proteína da superfície do vírus que causa a hepatite B.
Em 1967, quando estava na New York University (NYU), nos Estados Unidos, em um artigo publicado na revista Nature, a Profa. Ruth mostrou que era possível imunizar roedores contra a malária por meio da irradiação dos esporozoítos, um dos estágios de vida do Plasmodium berghei, após mostrar como infectar os mosquitos com esses parasitas.
A Profa. Ruth tratou alguns exemplares do parasita que infecta roedores, com raios X, para enfraquecê-los. Na sequência, ela injetou os parasitas enfraquecidos em camundongos, que se tornaram imunes a esses parasitas. Este foi o primeiro passo, mas não foi suficiente. Nos anos seguintes, os dois cientistas fizeram outra descoberta fundamental: identificaram a circunsporozoíta principal (CS), proteína que recobre o parasita que ativa o sistema imunológico de mamíferos.
Após clonagem e sequenciamento do gene da proteína CS em parasitas da malária símios (Plasmodium knowlesi), eles conseguiram produzir a proteína em laboratório e publicaram o trabalho em 1980 na revista Science. Este trabalho permitiu a produção da proteína CS como proteína recombinante (rCS), o que abriu o caminho para vários estudos epidemiológicos de populações vulneráveis expostas ao esporozoíto da malária.
![Brasileiros e a Vacina Antimalárica](https://aescolalegal.com.br/wp-content/uploads/2021/10/presenca-feminina-em-labs-d.jpg)
Foi essa contribuição fantástica no uso de esporozoítos atenuados por irradiação, que levou ao desenvolvimento desta vacina, abrindo uma linha de pesquisas que influenciou muitos pesquisadores a continuar enfrentando o enorme desafio de desenvolver uma vacina para a malária.
Hoje, pouco mais de 60% das vacinas em testes para seres humanos é baseada nos antígenos de superfície dos esporozoítos inspirados no trabalho desenvolvido pelos dois cientistas.
Foram esses trabalhos iniciais que possibilitaram o desenvolvimento da mosquirix, produzida a partir de uma proteína do plasmódio e outra do vírus da hepatite B.
A professora Ruth faleceu em 2018 e um obituário na revista Nature celebrou suas contribuições que abriram o caminho para uma vacina contra a malária.
Por que demorou tanto?
Primeiro, é uma doença que afeta populações vulneráveis em países de baixa renda, não há tanto investimento nem interesse por parte de grandes farmacêuticas. A malária é causada por parasitas, que são mais complexos que vírus e bactérias. O ciclo de vida dos parasitas que causam a malária envolve cerca de mil genes com vários estágios de desenvolvimento.
O parasita entra no organismo humano, passeia na corrente sanguínea da vítima, se instala no fígado, onde se reproduz. Em seguida volta a circular no sangue, infecta as hemácias (glóbulos vermelhos), volta a se multiplicar e depois destrói as células. Nesse processo, o parasita destrói muitas células do fígado e dos glóbulos vermelhos, causando a doença.
O desenvolvimento de vacinas é um grande desafio, pois em cada ciclo de vida, o parasita adquire diferentes formas, ele também pode ficar em estágio dormente por vários meses ou até anos no fígado do hospedeiro humano. Pessoas imunossuprimidas, idosos e crianças pequenas são os mais afetados. São parasitas que têm grande capacidade de sofrer mutações e adquirem resistência a medicamentos com muita facilidade.
Por isso, a grande maioria das candidatas vacinais nem sequer avançam para os testes clínicos em humanos. A mosquirix age induzindo uma resposta de proteção imunológica contra o primeiro estágio do parasita, antes que ele tenha a possibilidade de chegar ao fígado, impedindo o mesmo de começar seu estágio de reprodução.
É preciso garantir acesso sem relaxar nas outras medidas preventivas
Uma coisa é ter a vacina, outra coisa é garantir acesso e fazer a vacina chegar nas crianças, respeitando o esquema de 4 doses. No mundo real, isto é bem mais difícil, existem barreiras financeiras e geográficas, pois muitas pessoas moram longe de centros urbanos, distantes dos centros de saúde, não têm nem como pagar transportes coletivos. Existem barreiras culturais, falta esclarecimento e normalmente pessoas afetadas por malária, são afetadas por outras doenças como tuberculose e HIV.
Um estudo publicado na revista PLOS Medicine em 30/12/2020 estimou que a vacina poderia prevenir 5,4 milhões de casos e aproximadamente 23 mil mortes de crianças por ano. Um outro estudo envolvendo 6831 crianças na faixa de 5-17 meses de idade, publicado no The New England Journal of Medicine no dia 09/09/2021, mostrou que a proteção das crianças é maior quando, além das doses da vacina, as crianças tomam outros medicamentos contra a malária, como a combinação sulfadoxina–pirimetamina ou a amodiaquina.
![Brasileiros e a vacina antimalárica](https://aescolalegal.com.br/wp-content/uploads/2021/10/pesquisas-em-vacina-contra-.jpg)
A R21, uma possível nova vacina contra a malária
A Ciência avança e uma outra candidata vacinal contra a malária está sendo desenvolvida pela Universidade de Oxford. A candidata R21 foi testada em 450 crianças com idade de 5-17 meses em Burkina Faso, na África e os resultados preliminares de um estudo duplo-cego, randomizado e controlado por placebo, publicados na revista The Lancet no dia 20/04/2021, mostraram eficácia de 77% no grupo que tomou a dose alta e 71% no grupo que tomou uma dose mais baixa.
O artigo final foi publicado na revista The Lancet no dia 05/05/2021. Três doses da vacina foram administradas em intervalos de 4 semanas antes da temporada de malária, com uma quarta dose um ano depois. Neste esquema, a vacina mostrou bom perfil de segurança.
Um gigantesco muito obrigado e todo o nosso reconhecimento aos brilhantes cientistas brasileiros, Profa. Ruth Nussensweigh e Prof. Victor Nussensweigh, por essa contribuição fantástica para a humanidade!!!
Luiz Carlos Dias – Professor Titular do Inst. Química da Unicamp.