ConteúdosEducadoresMulher

Coronavírus o mundo em suspensão

Considerações sobre vida e educação, no contexto da psicologia analítica e pedagogia simbólica.”

“Ao cair um fio de cabelo no Oriente, faz-se ouvir um estrondo no Ocidente”
Koan da sabedoria Zen

Valéria Sanchez Silva

São Paulo, 12/05 de 2020.

5 Minutos

Estamos vivendo tempos difíceis, adoecidos, insanos… O contexto é inusitado e o inimigo (Covid-19)1 Corona-vírus, intensamente contagioso. A característica epidêmica, neste caso soma-se ao fator de alta transmissibilidade, o que gera o quadro de pandemia, ou seja condição que se estende a todos. O (covid-19) desconhece fronteiras, do oriente ao ocidente, atravessa continentes, países, estados, cidades, esquinas. Desloca-se tão ou mais rapidamente, que a nossa capacidade de percepção ou administração.

Estamos sendo todos “pegos”, de uma forma ou de outra, na contramão das rotinas da vida, e sem repertório para o enfrentamento. São tempos de incertezas generalizadas. As medidas preventivas, do Ministério da Saúde seguem recomendações da OMS, que alinha orientações da quase totalidade dos países. As orientações vão das práticas de higiene, às medidas extremas de isolamento social, em caráter de urgência! Ao toque do (covid-19), o mundo se retrai e paralisa, causando mal estares, mortes e mudanças estruturais, em potência devastadora aos quatro cantos do mundo…

Essa gama de reverberação, remete à teoria doEfeito Borboleta “…O bater de asas de uma borboleta pode influenciar o curso natural das coisas e, assim, talvez provocar um tufão do outro lado do mundo.” Fenômeno claramente demonstrável pelo covid-19, onde as relações de dependência e interdependência sistêmicas causam mudanças estruturais e profundas, a partir das condições sensíveis, de estímulos invisíveis advindos da China… 

Nunca foi tão fácil compreender os efeitos causados por um vírus invisível vindo do oriente, e os estrondos que se espraiam pelo ocidente. As ondas de desafios, em estrondos de tsunami global, sem precedentes, desencadeiam a maior mudança da história contemporânea mundial. O impacto está sendo percebido internacionalmente como um big-crush, uma quebra descomunal, que desconfigura a vida estabelecida, o establishiment na dimensão de uma “terceira guerra mundial”, como afirmou o presidente da França, Emanuell Macron.

O isolamento se apresenta como a forma mais eficiente de prevenção, evitando o perigo da contaminação simultânea. Achatar a curva da manifestação da doença, diminuir o ritmo da propagação e evitar o colapso dos sistemas de saúde se alinham à medida fundamental. Estamos aprendendo com experiências de maior ou menor sofrimento e êxito de países como a China, Itália, Inglaterra, USA, etc.

No Brasil cada região, cidade, situação, comunidade, tem suas peculiaridades e indicadores de conduta; mas a restrição de mobilidade e a indicação de isolamento, é unânime para todos. Medidas de higiene, alimentação, exercícios físicos (em casa), complementam as recomendações. Somos seres gregários e a vida em modos de convivência “normal” deixou de existir…. Encontramo-nos literalmente deslocados, sem lugar nem condição de opção. Temos que inventar outras rotinas e formas de exercer a escola, o trabalho, a academia, lazer, compras, viagens…

O quanto suportaremos é uma incógnita! (Img. internet)

Como viver em isolamento social? Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama, denominou “placenta social” as relações humanas vitais e mais próximas que nos alimentam, protegem e referenciam. Como o próprio nome diz a placenta social é fundamental na manutenção da nossa saúde e viabilização das condições de saúde psicossocial.

Em tempos de pandemia as ‘relações virtuais’ são uma forma de amenizar o isolamento e viabilizar afetos. Esses novos modelos e redes sociais consolidam a ‘placenta social-virtual’, como manutenção e sociabilização da espécie em redes de amigos, familiares e grupos de apoio.

A vida em conexão precisa continuar, ainda que por outros caminhos e endereços. As plataformas digitais são caminhos alternativos, que vieram para ficar, e tem ajudando a reconfigurar a nova ‘ordem mundial’. Na área afetiva, as carências se somam aos conflitos… Se por um lado abraços e beijos ocasionais se tornaram ameaçadores e fora do contexto, em outro extremo, situações de convívio forçado, em regime de confinamento, pode acentuar as contingências de violência doméstica.  Permanecer em casa, traz questões paradoxais para quem não tem casa. Orientações confusas sobre, como evitar aglomerações e como manter a distância, para quem mora em comunidades, com espaço restrito e sem condições de salubridade?

Para outras pessoas pode ser sufocante e até mesmo desesperador permanecer em casa, como prisão domiciliar. Estamos destituídos, perdidos, soltos, sem ação, confusos, atônitos e literal ou simbolicamente, sem chão… É preciso parar e acionar o breque da engrenagem do “sistema”, e isso não é qualquer coisa! Abrange uma gama incomensurável de fatores, com complexidade e consequências, sem precedentes. O isolamento acionado como medida para salvar vidas, inviabiliza muitas condições de manutenção da própria vida… que atônita, encontra-se, sem condições. Desinstalados e ou confinados, comungamos de um mesmo processo de aprendizagem, na condição de aluno sem escola.

O nosso dever, é dar ordem ao caos e ao pandemônio social do nosso tempo.” Viana Moog                                                                                                                                         

Nas últimas semanas recolhi alguns comentários sobre este momento, no consultório, via  ‘internet’: “Este momento não me parece real’- ‘Tenho a sensação de estar vivendo um pesadelo’- ‘Perdi o chão, e estou com medo de acabar em caos’,   ‘Fui dormir e acordei  em outro mundo… quero acordar’- ‘Deve ser exagero da mídia, isso não pode estar acontecendo… – ‘Sinto como se a mãe Terra tivesse posto todos os seus filhos no quarto, para pensar…’ – ‘Perdi as minhas referências, estou com medo, mas preciso confessar que, uma parte em mim, está gostando da experiência…’- ‘Sinto uma tempestade desabando, e uma  nuvem escura e imensa se aproximando…’”

Atônitos observamos a relação sistêmica dos efeitos do coronavírus; e presenciamos incrédulos, o desarticular da trama,  o pesadelo se instalando na vida real, a ameaça do caos, e a chegada de uma gigantesca sombra que ameaça desabar, provocando medos e inquietudes, em meio a instigantes e desafiadoras sensações opostas…  A conduta é parar, observar, silenciar e começar a escutar:  O inimigo é invisível, está no comando, retirou as ‘certezas’, nos enquadrou em quarentena indeterminada. Revelou impotências, desmantelou planos, trouxe inseguranças, revelou medos, embaralhou todos em nós…

Às consequentes rupturas do coronavírus, somam-se vetores e potências para além de fronteiras, e previsões, em desdobramentos inimagináveis… Da noite para o dia, de maneira implacável, estamos vivendo a desconstrução da complexa teia da civilização capitalista patriarcal. A estrutura do Dinamismo Patriarcal de posicionamento da consciência, privilegia as funções relativas à: “hierarquia, dominância, obrigação, ordem, perfeição, culpa e poder (…) Fomenta o culto à tradição, aos valores dogmáticos e à causalidade racional.”*4  Em estado de desorientação e caos, percebemos o fio que nos interliga a todos.

Estamos vivendo tempos de estresse agudo, crônico, sistêmico, global, e sem data para terminar… Fomos parados e aqui estamos, à parte, apátridas, confinados, circunscritos a nós mesmos, à nossas escolhas ou a falta delas. Essas condições reunidas podem nos levar a um agravo da situação de pandemia para outra ainda pior, a de pandemônio. O prefixo (pan), significa todos mas também faz referência ao deus (Pãn) da Arcádia, que segundo o mito,  surgia assustadoramente, e com seu berro, gelava de terror, medo, (pânico) aos desavisados.

O fato é que Pãn, não é tão feio como pintam… Ele representa o campo agreste da natureza e suas forças autônomas, em estado puro, selvagem, livre, solto, nos cortejos dionisíacos. Se a natureza selvagem assusta o homem civilizado, o pretenso domínio e repressão da natureza, asfixia, esteriliza e adoece o mundo. A palavra (daimonio) vem do grego, daimon “entes ou forças de natureza supra humanas”.  A união de pan + daimonio, remete ao neologismo “pandemônio, que significa: “Abrir a capital imaginária do Inferno.”  O perigo que se apresenta mediante o covid-19, vai além da crise sanitária, com agravos em desencadeamento de tsunamis-sanitário-psico-socio-econômicos-políticos simultâneos e globais.

 O sociólogo Zygmunt Bauman diz; que em crises sociais, indivíduos assustados se arrebanham e se tornam turba.  “A turba, procura a ação autômata, em bloco, mas não pode produzir efeito sobre as causas naturais da [crise]. Assim sendo, busca uma causa acessível e fora de si, que possa aplacar o seu apetite por violência. O restante é muito confuso, mas fácil de imaginar…” Não interessa abrir as portas à violência e inferno, muito menos fazer disso do nosso território, a sua capital. Mas talvez não tenhamos repertórios, recursos para lidar adequadamente com os paradoxos que se nos impõe.

Mergulhamos em uma das maiores crises sanitárias, atravessada por desequilíbrios políticos, psicossociais, com desigualdades econômicas abissais…  Vivemos uma fase insana da vida, e este enfrentamento pressupõe uma luta, que exige que estejamos todos do mesmo lado; unidos contra o covid-19. Social e economicamente interligados em empatia e solidariedade.  “Ou viveremos todos juntos como irmãos, ou morreremos todos juntos como idiota” dizia Martin Luther King.Mas estamos vivendo a pandemia por seu lado do avesso, em disputas, desalinhados, na contra-mão da vida. A condução política do nosso atual governo, fabrica e propaga mensagens dúbias e contraditórias…

Em psicologia chamamos de dupla mensagem as falácias ditas e desditas, em medidas e desmedidas, que confundem, desorientam e levam à desorientação psíquica. Convocam, confrontam e negam as próprias falas, arrebatam a turba em coletivos e carreatas insanas, favorecendo contágios, disputas e o agravo das crises… Seguimos na direção do pandemônio, rumo ao caos sanitário e a esquizofrenia social.  Quando falamos do perigo de abrir a porta da capital do inferno, estas seriam algumas das chaves…

Como “bem parar” na pandemia e evitar o pandemônio? Temos inúmeras perguntas sem respostas, e precisamos continuar a inventar a vida em estado de ‘suspensão’.  Esta condição, é o próprio desafio, e se estende majoritariamente às áreas da sobrevivência, saúde, ciência, educação. Para nós educadores, a situação de escola fora da escola traz a convocação de (24h/ dia) na direção de superações…

Aos que anseiam acabar a quarentena para voltar a vida normal, o biólogo, pesquisador e divulgador científico brasileiro Átila Amarino, em entrevista para o programa Roda Vida, responde: “Não temos como voltar a um mundo que não existe mais.”  Se não podemos voltar atrás… temos que seguir”. Neste momento, seguir sem ter para onde ir, é suportar a vida em estado de ‘suspensão’... E isso pode ativar no campo psíquico, desafios surpreendentes.

A cultura grega, a mitologia órfica, ensina que Caos, é a possibilidade de Tudo, assim como do Cosmo. Dar ordem ao caos é conspirar na intenção de um “outro” cosmo possível… Parafraseando o lema do Fórum Social Mundial: “Um outro Mundo possível”. Soma-se a esse desafio a “Ação, pela não-ação”, dos ensinos Taoísta de Lao Tsé: – ou por ‘outras’ formas de ação… A suspensão da vida conhecida, consciente, nos submete à sombra do desconhecido, da escuridão, do inconsciente.

Desinstalados, vivemos condições múltiplas de estresse sistêmico, que assombram e desafiam. Podemos afirmar que a nova escola começa aqui: fomos dormir numa noite, como adultos, pais, educadores e acordamos todos como alunos sem escola… Sabemos apenas que, precisamos reinventar outros modos de ser e estar escola, cultura e mundo.

A psicologia bioenergética constata, observando a nossa natureza biológica, que em situações de perigo, temos comumente, três opções instintivas: lutar, fugir ou paralisar. Neste caso não temos ciência, conhecimento para lutar. Também não temos para onde fugir, nenhum lugar é seguro. Além disso não sabemos ‘como parar’. A incerteza generalizada é a própria sombra desconhecida avançando… A saída é para dentro, adentrar, ficar em casa, voltar à Casa Comum.

Tudo é psique, mundo e cosmo.

Etimologicamente, a palavra psicologia significa (psique, alma) e (logos, estudo), alma em estudo, ou estudo da alma.A psicanálise e a psicologia analítica, entendem psique, como a totalidade das instâncias consciente e inconsciente, que se estende para muito além da soma de suas partes… A psicologia analítica, de Carl Gustav Jung, nos demonstra que é natural, em tempos catastróficos, transitar por estados sintomáticos, em diferentes graus de psicopatologia. Quando não temos repertório que expresse o sofrimento, podemos extravasá-lo através de sintomas. Neurose é “o sofrimento que ainda não encontrou o seu significado”. No caso da pandemia, como responder às questões postas como angústias, medos, fobias etc?

As fronteiras do real e imaginário podem se fundir em estados de confusão mental, como águas de um mesmo mar e se misturar em inevitáveis ondas de estresse, e assim como o coronavírus, nos submeter a todos. Na psicopatologia, comportamentos antes classificados como transtorno obsessivo compulsivo (TOC), ou persecutórios paranoides, em tempos de pandemia, são apenas sinais de ‘cuidados’. É possível reativar velhos sintomas ou ‘visitar’ o manual de classificação das doença internacionais, (CID-10). Podemos também inaugurar e desenvolver sintomas inéditos, próprios destes tempos desconhecidos…

É importante desenvolver o autoconhecimento e saber identificar ‘quando’ procurar a ajuda profissional. Mas tempos de desequilíbrio, geram sintomas equivalentes e devem ser recebidos como frutos da ocasião. Aceitar, observar e aprender com os ‘incômodos visitantes’, é um bom jeito de começar a lidar com o desconhecido em si mesmo… Os sintomas devem ser vistos como sinais, insights, senhas, pistas das questões que nos inquietam e clamam por respostas.

A psicologia é parte das ciências da natureza e está inserida em suas ‘condições’. Jung afirma que as pessoas que nada sabem da natureza, tem mais chance de se tornarem neuróticas, uma vez que se posicionam à parte: “A nossa psique é estruturada à imagem do mundo, e o que ocorre num plano maior se produz também no quadro mais ínfimo e subjetivo da alma. (K.Jung)  Sob o modelo desenvolvimentista exploratório, a história da civilização patriarcal, especialmente apartir do sec. XVIII, levou a psique, ou a alma do mundo, ‘anima mundi’ a adoecer.

Jung retoma esta expressão, da alma neoplatônica do mundo, como uma das tarefas da psicologia. Em suas memórias, afirmou que dentre os assim ‘chamados neuróticos’, um bom número não o seria, se o homem não tivesse se dissociado da natureza. Vivendo a natureza e não apenas a vendo de fora: a desunião consigo mesmo teria sido poupada.  O escritor e poeta Lawrence, D. H., constatou no início do sec. passado: “A anima mundi está afundando, como uma barcaça lotada de lixo.”  O ser humano como parte inerente da natureza está afundando junto, como causa e consequência…

Stanislaw Grof, define consciência e cosmos, mente e natureza, como parte de uma e mesma representação do todo. Em ‘A mente Holotrópica’ ele descreve: “Cada partícula de energia e matéria, representa um microcosmo que envolve o todo e transmite informações sobre as mesmas”. Em tempos de pandemia experimentamos o mundo sintomático que somos, que por sua vez espelha nossas ações, e nos reflete de volta… Psique, corpo, mundo, cosmo, são extensão e parte, do mesmo território.

“O mistério da Esfinge: Decifra-me ou devoro-te.”
Édipo Rei, Sófocles.  (Img Epoc Times)

O (covid-19) traz desafios inusitados e assustadores. Estamos vivendo literal e simbolicamente sob a égide de um monstro invisível e contemporâneo.

E assim como a Esfinge que se apresentou a Édipo nas estradas do caminho, ele (covid-19) se apresenta a nós, nas esquinas do mundo, em equivalente desafio: ‘Decifra-me ou devoro-te’. A etimologia da palavra esfinge, vem da mesma raiz, esficter, relativo à tensão visceral e muscular que o desafio evoca e estamos todos à mercê de suas questões: A que vem?  O que quer? Como parar? Como mudar? Como sobreviver? Qual o sentido desse desafio?  Enfim, como responder assertivamente à errância desses mistérios?

Talvez o novo corona seja: um ‘daimônio apocalíptico’… – Ou um ‘sábio daimon’ sistêmico, mestre do inter-ser?  – Quem sabe um ‘alquimista ao revés’, trans-forma-dor do ouro, ao pó… – Uma ‘entidade marxista’, no ensino prático do “Capital”.    – Talvez seja ‘Kairos’ senhor do tempo oportuno, a destronar ‘Cronos’, pelas muitas faltas de tempo… – Quiçá uma molécula de ‘morcego raivoso’, em resposta ambiental – Talvez apenas o ‘ativamento do sistema imunológico da Terra    Uma coisa já sabemos: “essa esfinge” nos quer conectados, interdependentes, em estado comum.

Uma dessas hipóteses, pareceu literal, ao deputado Carlos Bolsonaro, ao declarar: “O desenho é claro: partimos para o Socialismo . O pensamento cartesiano nos leva à literalizações reducionistas e causais. Mas também revela a própria condição de ‘insalubridade’ que somos ou estamos. Os testes de ‘humanidade’ têm sido diários… A pandemia, como parte da tarefa, destituiu e ainda irá destituir certezas, domínios, arrogâncias (hybris em grego). Traz o homem de volta a sua dimensão de húmus – lama fértil, estado básico da matéria – em condição de reciclagem, compostagem, ressignificação da vida e suas instâncias como: educação, cultura, consumo, rumos civilizatórios…

A escola está fechada, mas finalmente se abriu ao ‘não saber’… Nesse estado de suspensão temos a oportunidade de revisar os saberes em questionamentos necessários e urgentes, sobre caminhos e descaminhos civilizatórios, nas interfaces do conhecimento.  Fique em casa com-ciência. O desenvolvimento da consciência não é um fenômeno simples; não se ensina, se apreende… pois é fruto maduro do conhecimento crítico.

“O que ocorrer com a terra, recairá sobre os filhos da terra… há uma ligação em tudo (…) A terra não pertence ao homem, é o homem que pertence à terra.” Chefe indígena Seattle,1854

A cultura tradicional dos povos originais, vive em harmonia com todos os elementos da natureza, desde os princípios… A percepção do ser humano como responsável dessa cadeia sistêmica interdependente, vem se consolidando principalmente a partir dos desequilíbrios ecológicos provocados pelo homem.  Estudos sobre a Teoria Gaia que compreende o planeta Terra como um ser vivo, uma entidade planetária, dotada de corpo, órgãos, circulação, temperatura, respiração, pulsação… As florestas, a vegetação, assim como os animais, dos quais somo parte, co-habitam o campo epidérmico de Gaia, inseridos na sua biosfera, como parte da pele do planeta…

Podemos conspirar com a homeostase, em atitudes cooperativas, integrados como parceiros do sistema, ou na direção contrária, como exploradores, predadores, inimigos da terra, da ‘Grande Mãe’, como era chamada, desde a antiguidade. Saúde ou adoecimento são consequência da qualidade relacional e interdependente de nossas ações, afinal; “o que ocorrer com a Terra, recairá aos seus filhos…”

A coisificação da natureza, assim como a exploração mercantil de seus recursos, como se fossem infinitos, traduz resultados desastrosos, da produção ao descarte de resíduos, em desastres ambientais generalizados e recorrentes…  As contas, literalmente não fecham – E a Terra impõe seus limites… Recuperar a capacidade de escuta à terra, é recuperar a nossa relação de ser alma no mundo.  O coronavírus como fruto da natureza, ‘toca a todos’. Essa é a sua natureza de ser: pan… É o equilíbrio sistêmico de Gaia que nos permite existir, ou não.

Quando envenenamos a terra, envenenamos toda a cadeia da vida. Somos causa e consequência de tudo o que acontece. Sobre a pandemia o Eco-psicólogo Dennis Merritt diz: “A psicologia ecológica compreende a proliferação do coronavírus, como algo que se manifesta globalmente, diante de um profundo desequilíbrio ambiental”. As forças da natureza não estão contra nós, são apenas indicadores dos desequilíbrios gerados.  Os desafios destes tempos se acumulam em necessidade de reinvenção dos sistemas civilizatórios. Nossos hábitos e ações automatizados estão interrompidas. O mundo estabelecido, em suspensão.

Os saberes impotentes, rendidos às crises. A vida se apresenta inteiramente oportuna às reflexões e reciclagens. Não é exagero afirmar que, cada fato é uma oportunidade pedagógica… um desafio a ser estudado.  Se entendemos escola como a casa do conhecimento, podemos redimensionar agora, a casa como território da escola, em intima interconexão. E aqui casa, escola, psique e mundo são apenas instâncias do mesmo cosmo. Somos natureza e precisamos encontrar respostas para as questões que nos assombram...  Este é um momento oportuno para repensar a teia sistêmica da vida. Não sabemos o que fazer, nem por onde começar.  A psicologia analítica propõe: comecemos por nós mesmos… 

A Educação como PrincípioO mundo grego não é só espelho, onde se reflete o mundo moderno na sua dimensão cultural e histórica. É também símbolo da nossa auto-consciência racional civilizatória. Somos filhos da Paideia, a mãe grega da pedagogia, da educação e civilização ocidental, que por sua vez, nasceu da efervescência dos mitos, poemas, musica, canto, dança, artes dramáticas entre outras formas de expressão.  Platão, é citado pelo filósofo e historiador alemão Werner Jaeger ao afirmar que, os primeiros fios da ‘ação educadora’, são frutos do campo dos mistérios e deslumbramentos dos povos originários.

Platão, o filosofo poeta – autor de A República (Img. Internet)

Na sua obra: “A Paidéia” afirma: “A ‘teoria” da filosofia grega está intimamente ligada à sua arte e poesia. Não contém só o elemento racional.” Diferentemente do nosso modus operantes; aonde o pensamento vem em primeiro lugar. Os gregos relevaram o senso inerente do significado da “natureza”, de modo que, nenhuma parte das manifestações humanas poderia estar isolada da matriz… “Chamamos orgânica a esta concepção, porque nela todas as partes são consideradas membros de um todo: pensamento, linguagem, ação e todas as formas de arte.”

Essa é a base e o manancial da educação e cultura; em estado de latência em cada um de nós, pronta a irromper sempre que as ‘condições’ sejam dadas… Nesse sentido Jaeger afirma: “Quanto maior o perigo de degradação sócio cultural (…) maior o profundo valor das forças conscientes do espírito, que se destacam na obscuridade do coração humano e estrutura, no frescor matinal, o gênio criador dos povos jovens, as mais altas formas de cultura.”

Vivenciamos um grande impacto civilizatório, pelas vias de um vírus disrruptivo, onde o perigo e a degradação são eminentes.  No entanto parece que o covid-19 é apenas ‘uma gota d´água’ que faz transbordar o caldeirão do planeta. Perspectivas distópicas se apresentam, em regime de urgência. Mas a pausa, para a diminuição do contágio, pode ser a oportunidade para que se constele no consciente coletivo do planeta as condições de um novo e re-significativo ciclo da paidéia.

Educação como re-inversão e re-invenção do mundo.

Estamos na transição de um mundo extrovertido, para outro intro-vertido, vertido para dentro, em casa, como território do saber, de volta a si.  A re-inversão da libido nos convida a adentrar, e é nesse campo, de introversão que a pesquisa, a nova investigação começa. De fato não há dentro, nem fora, tudo é psique e mundo. Mas, há sim diferentes ângulos e perspectivas que refletem distintos pontos de vista. O psicodrama reconhece a importância da tarefa da introspecção na técnica do solilóquio, chamada de: “psicodrama interno”, como oportunidade de dialogar com as instâncias que nos habitam.

A psicanálise e a psicologia analítica, também reconhecem nesse território, o berço e a base do saber.  A oportunidade de re-inversão da libido, não deixa de ser um privilégio… Como a estranhos nos ninhos, temos a oportunidade de ficar mais tempo em casa e realmente conhecer o território. A convivência, é uma oportunidade de re-conhecimentos: _ Como estamos vivendo este período de confinamento em familia? Diálogo? Briga? Distanciamento?  Aproximação? Violência? Contradição? Inovação? Colaboração?   _Como estamos vivendo as condições de escola? 

Repetindo e reeditando o modelo desvitalizado e usual de ensino, com a diferença de ser pelas vias do ‘EAD, ensino a distância’, via internet. Ou nos abrindo a questionamentos? Nessa perspectiva, não existe um fato, que não seja pedagógico. Esta é uma oportunidade educativa ímpar… Afinal, como diz o educador Ruben Alves: “A primeira função da educação é ensinar a ver…!”

Onde estamos e para onde vamos? A vida em suspensão exige matrículas em outras condições de escola. A educação como perspectiva pedagógica tradicional é meramente racional e limitada. A exclusão da inteireza, dissociado da natureza, faz com que os próprios educadores repitam modelos des-animados, sem alma, como um reflexo do modelo de sociedade adoecida que construímos e pertencemos. Sobre isso, o analista e educador Carlos Byington disse: “Alunos (…) geralmente imobilizados em cadeiras (…) ouvido frases lógicas, desvitalizadas da emoção, do prazer, do lúdico, e da dramatização existencial da vida, (…) longe da natureza (…) quase sem corpo, sem sociedade, sem imagens, sem emoção.”

Represa ou rio fluindo?

Nessas condições a libido (energia vital) fica aprisionada, represada e cobra seu preço; geralmente em intercorrências de violência nas salas de aula e fora delas. Medidas punitivas e mecanismos de repressão, se retroalimentam em muitas faltas. Esta é uma oportunidade para refletir o mundo e o papel da educação como matriz criadora entre o mundo que temos e o mundo que queremos.

Estamos vivendo um paradoxo: O modo de vida conhecido, e outro por conhecer, desconhecido, sombrio…  inconsciente.  Segundo Jung, essa tensão entre os contrários,pode nos fazer “(…) chegar ao limite do suportável, quando levado a sério”.  Mas ao mesmo tempo é nessa intersecção de mundos que “(…) as soluções se apresentam de maneira espontânea.” Esse é um fenômeno enantiodrômico, uma inversão de sentidos, e se dá através da “emergência do ‘símbolo’, que é o elemento de sentido que jaz oculto provavelmente em todo aparato biológico”.

O símbolo é o denominador comum, o intermediário entre as instâncias conscientes e inconscientes. É a linguagem original e universal da humanidade, dos povos tradicionais, dos artistas, dos poetas, dos cientistas, dos sonhos;dormindo ou acordado.  É a potência criativa das artes, matriz da paidéia, da pedagogia, da educação e cultura, que falava Platão. Esse saber se esconde, e se revela no campo imagético. Podemos entender este, como um dos maiores desafios à missão de educador.  Tudo o que acontece no mundo externo tem origem no nosso interior…

A esfinge coronavírus demanda, e podemos começar a responder pelas vias lúdicas, imagéticas, científicas, poéticas, orgânicas, integradas, sistêmicas…  Estamos todos nivelados à condição de pan-aprendizes, em estado comum de não-saber. A dimensão simbólica nos atravessa em sonhos, diurnos e noturnos. Podem se espraiar em fixações e retrocessos, ou em re-evoluções inovadoras. O medo do novo, do desconhecido, o misoneísmo, pode nos induzir a repetir os mesmos padrões, incorrendo nos mesmos resultados. Ou podemos responder com símbolos estruturantes criativos, ousando ir além

O sistema educacional, como base da cultura de nosso tempo clama por reformas. As condições e falta de condições, destes tempos em suspensão, evocam e instigam a imaginação… Reúne o mundo objetivo e subjetivo, consciente e inconsciente, extrovertido e introvertido à dimensão simbólica… que remete a totalidade, segundo Byigton: ao Self pedagógico e cultural. O novo nasce, na interface dos opostos, do absurdo…  O que incomoda, também instiga e as inquietudes não são apenas fatores de estresse e sintomas. São também capacidade e potência criativa, do vir a ser, do devir…

A Pedagogia Simbólica

Ela é um método criado por Carlos Amadeu B. Byington, nos anos 70/80.  Essa pedagogia é baseada no desenvolvimento da personalidade como um todo e inclui todas as dimensões da vida: corpo, natureza, sociedade, política, atravessada pelas dimensões da emoção e imagens. É um método construtivista, que privilegia experiências, não se reduz à abstração.

Baseado nas obras de Piaget, Heidegger, Freud, Jung, Teilhard de Chardin, Vigotsky, traz o propósito de uma educação viva. “A pedagogia simbólica baliza o ensino e aprendizado com o funcionamento histórico da vida individual e cultural, integrado à vivência objetiva, emocional-social do corpo bio-físico-químico do ecossistema planetário, do qual somos parte.”

Esse método traz a dimensão dos afetos e diálogos. “O desenvolvimento simbólico da psique, dentro do vínculo transferencial amoroso professor-aluno.”  É a qualidade da relação que inter-media a saúde da educação. Os lugares abandonados pelo amor, são ocupados pelo poder, diz Jung. Esta é uma pedagogia centrada no processo emocional, cognitivo e existencial do indivíduo, da escola, do planeta e do cosmo.  A humanidade, assim como o mundo está mudando de pele, de formato, de meta e conteúdo. Vivemos tempos confusos e ao mesmo tempo oportunos, para nos tornarmos a escola que queremos.

A pedagogia simbólica almeja a contemplação da consciência sistêmica, na teia da vida, que prima na direção do diálogo, cooperação, respeito às diferenças e inclusão democrática. Byington fala que esta é uma pedagogia do “Self, porque é a soma de todos os conteúdos psíquicos incluindo a identidade do Eu e do Outro, no consciente e no inconsciente (sombra), aquela parte do Eu que foi alijada para o Inconsciente.”

Uma nova ordem civilizatória clama na direção da alteridade: (alter – outro), implicados na interação-natureza, em condições de equivalência e igualdade. Na interligação de tudo e todos (pan). Estamos vivendo, assombrados, o lusco-fusco destes processos m transição…

Valéria Sanchez Silva – Psicóloga

Compartilhar

Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

Fechado para comentários.