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Ecos do Inconsciente

A REGRESSÃO ESPIRITUAL NA AUSÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Ecos do Inconsciente
Jorge Miklos – Psicanalista

No dia 23 de setembro de 1990 no diário de Petrópolis saiu numa coluna a denúncia do ‘psicanalista Eduardo Mascarenhas, candidato a deputado federal pelo PDT‘... Lá ele disse em palestra promovida pelo Centro de Estudos de Psicanálise Viva, em Petrópolis: ” O fracasso do modelo de atendimento na área de saúde adotado no Brasil é responsável por parte da onda do conservadorismo que invade a política.

Segundo ele, a população por não encontrar atendimento decente acaba buscando a chamada “terapia religiosa” frequentando os templos evangélicos que se multiplicam pelo país afora. Como estes grupos religiosos são liderados por conservadores e que buscam nos últimos anos estar representados politicamente, o risco é de que muitas das conquistas populares conseguidas na Constituição de 1988, sejam ameaçadas por um Congresso formado sem compromissos com os problemas terrenos.

Assim, três década depois, as palavras de Eduardo Mascarenhas ressoam como uma advertência não ouvida. O Brasil vive hoje uma realidade que se alinha de forma inquietante com a previsão feita em 1990. Portanto, a proliferação de igrejas evangélicas e a influência crescente da bancada evangélica no Congresso Nacional refletem exatamente o que Mascarenhas previu.

A “bancada da Bíblia” no Congresso Nacional do Brasil, também conhecida como “bancada evangélica,” é composta por parlamentares que se identificam com os valores cristãos. Especialmente os de denominações evangélicas, e que defendem pautas relacionadas à moralidade cristã, à família tradicional, e à liberdade religiosa. Esses parlamentares frequentemente formam blocos para influenciar contrariamente as decisões legislativas em temas como aborto, educação, drogas, e direitos LGBTQIA+.

Bancadas da Bíblia, da Bala e do Boi, trabalham juntas

Na Câmara dos Deputados, a bancada da Bíblia é composta por cerca de 100 a 200 parlamentares, o que representa uma parcela significativa dos 513 deputados federais. Esse número pode variar dependendo da contagem, já que alguns deputados se associam informalmente ao grupo, enquanto outros são membros ativos de frentes parlamentares evangélicas. Esses deputados são provenientes de diferentes partidos. Os mais representativos incluem: Partido Social Cristão (PSC); Partido Republicano da Ordem Social (PROS); Partido Republicanos; Partido Social Liberal (PSL); Democratas (DEM) (antes de sua fusão para formar o União Brasil); Partido Liberal (PL).

No Senado Federal, a bancada da Bíblia é menor em número, composta por aproximadamente 15 a 20 senadores entre os 81 que compõem o Senado. Estes senadores, embora em menor número, possuem uma influência significativa em pautas sensíveis à moral religiosa e ao conservadorismo social. Os senadores da bancada da Bíblia também são originários de vários partidos, com destaque para: Partido Social Cristão (PSC); Partido Republicanos; Partido Liberal (PL); União Brasil; Podemos.

A bancada da Bíblia é uma das mais organizadas e influentes do Congresso Nacional, especialmente em pautas que envolvem questões de costumes e religião. Seus membros frequentemente se unem em blocos para votar de maneira coesa em projetos de lei que consideram relevantes para a defesa dos valores cristãos. Essa bancada tem sido fundamental na discussão e na resistência a propostas de lei que tratam de temas como aborto, criminalização da homofobia, e educação sexual nas escolas.

Neoconservadores de sempre. Ecos do Inconsciente

A bancada da Bíblia, com sua expressiva quantidade de deputados e senadores, continua a exercer uma influência significativa no Congresso Nacional. Ela molda a agenda legislativa e os debates em torno de questões morais e religiosas no Brasil. Representa um segmento relevante do eleitorado brasileiro, que vê nesses parlamentares os defensores de suas crenças e valores no cenário político nacional.

A presença da bancada da Bíblia no Congresso Nacional é reflexo do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil nas últimas décadas. Esses grupos religiosos têm expandido sua influência para além do campo espiritual. Buscam representação política direta para moldar as políticas públicas de acordo com seus princípios. A agenda legislativa promovida por essa bancada frequentemente se alinha a pautas conservadoras que visam preservar uma determinada visão de moralidade cristã. E interferem em debates cruciais sobre direitos civis, educação, saúde e outros aspectos da vida pública.

Assim, uma das principais ameaças que a influência da bancada da Bíblia representa é ao próprio princípio da laicidade do Estado. O Brasil é constitucionalmente um estado laico. Portanto, significa que não deve haver uma religião oficial e que o governo deve tratar todos os cidadãos de forma igual, independentemente de suas crenças religiosas. Entretanto, a crescente força dessa bancada religiosa desafia essa neutralidade, tentando imprimir uma moralidade específica sobre as legislações que afetam toda a sociedade.

O Estado Laico

Por exemplo, debates sobre temas como educação sexual nas escolas, direitos reprodutivos das mulheres, reconhecimento de uniões homoafetivas e políticas de saúde pública. Elas são fortemente influenciados por valores religiosos específicos, muitas vezes em detrimento de uma abordagem mais plural e inclusiva. A bancada da Bíblia, ao defender suas posições com base em uma interpretação particular da moral cristã, pode acabar impondo esses valores a todos os cidadãos. Independentemente de suas crenças, isso é uma clara violação do princípio de laicidade.

Além disso, a influência desproporcional dessa bancada pode ser vista como uma ameaça à democracia. Justamente porque tende a promover políticas que não refletem a diversidade cultural e religiosa do Brasil. Embora a democracia se baseie na representação dos interesses da maioria, ela também deve proteger os direitos das minorias. No entanto, a agenda legislativa da bancada da Bíblia muitas vezes contrasta com os direitos de grupos minoritários. Dentre estes a comunidade LGBTQIA+, as mulheres que demandam acesso a serviços de saúde reprodutiva, e aqueles que defendem uma educação pública que reflita a diversidade e a ciência.

Outro aspecto preocupante é a maneira como essa bancada tem, por vezes, utilizado sua influência para bloquear avanços em políticas públicas. Opondo-se as evidências científicas, privilegiando crenças religiosas em detrimento do conhecimento técnico. Isso é particularmente grave em áreas como a saúde pública e a educação. As decisões políticas deveriam ser guiadas por estudos e evidências que beneficiem o bem-estar da população como um todo, e não por convicções religiosas particulares.

Mitos, crenças e crendices

Conforme alertado por Eduardo Mascarenhas na palestra de 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de ser uma das maiores conquistas da Constituição de 1988, enfrenta desafios estruturais há décadas que comprometem sua eficiência. A insuficiência de recursos, a má gestão e a corrupção endêmica em algumas áreas contribuem para que muitas pessoas, especialmente nas periferias, busquem nos templos evangélicos o apoio que não encontram no sistema público.

A má gestão e a corrupção agravam ainda mais a situação. Recursos que deveriam ser destinados à saúde, educação e programas sociais muitas vezes são desviados ou mal administrados. O resultado são serviços ineficazes e insuficientes. A sensação de abandono e desesperança leva muitas pessoas, especialmente nas periferias, a buscarem alternativas onde possam encontrar algum tipo de apoio e pertencimento.

A Igreja Política

É nesse contexto de falência do sistema público que os templos evangélicos emergem como um ator social de relevância crescente. Em muitas comunidades carentes, essas igrejas oferecem mais do que apenas consolo espiritual. Elas proporcionam uma rede de apoio que inclui ajuda financeira, aconselhamento, e até mesmo cuidados médicos e psicológicos em alguns casos. Para muitos, essas igrejas se tornam o único espaço onde encontram acolhimento e respostas para os seus problemas imediatos.

Além disso, as igrejas evangélicas frequentemente promovem um forte senso de comunidade, algo que as instituições públicas falharam em proporcionar. A construção de laços sociais e a sensação de pertencimento que esses templos oferecem são poderosos atrativos. Especialmente para aqueles que vivem à margem da sociedade e que não encontram no Estado a proteção e o suporte de que necessitam.

Embora as igrejas evangélicas desempenhem um papel importante no suporte às comunidades, sua crescente influência social e política levanta questões sobre os efeitos dessa substituição do Estado pelo poder religioso. Quando a provisão de serviços sociais e de bem-estar é assumida por instituições religiosas, especialmente em um país como o Brasil, onde a diversidade religiosa é enorme, há o risco de que a linha entre o serviço comunitário e a doutrinação religiosa se torne tênue. Isso pode resultar em uma pressão social para que os indivíduos adotem certas crenças ou práticas religiosas como condição para receber apoio.

Apertando o nó do cabresto

Essa situação também tem implicações políticas. A crescente dependência das comunidades mais pobres em relação às igrejas evangélicas fortalece a influência política desses grupos. Como muitos templos evangélicos estão alinhados com posições conservadoras, essa influência pode se traduzir em apoio a políticas que refletem esses valores. Portanto, muitas vezes em detrimento de uma abordagem mais inclusiva e baseada em direitos.

A substituição do Estado pelas igrejas evangélicas também representa uma ameaça à laicidade do Estado. Quando o bem-estar social passa a depender de instituições religiosas, corre-se o risco de que a neutralidade do Estado em relação às religiões seja comprometida, e que políticas públicas venham a ser influenciadas por princípios religiosos específicos.

A palestra de Eduardo Mascarenhas revelou uma percepção aguda sobre o impacto do fracasso do sistema de saúde pública no Brasil e a ascensão de um conservadorismo religioso crescente. Mascarenhas alertou que, diante da falta de um atendimento de saúde digno e acessível, a população, especialmente nas periferias, começou a buscar apoio em templos evangélicos, que se multiplicavam pelo país. Essa migração em direção às igrejas conservadoras, segundo Mascarenhas, representava um risco para as conquistas populares da Constituição de 1988. Um problema que poderia moldar um Congresso Nacional mais alinhado a interesses religiosos do que a soluções sociais concretas.

Vazio espiritual e bons negócios

Esse alerta pode ser ampliado e relacionado com o aumento global do fundamentalismo religioso. O fundamentalismo surge como uma resposta ao vácuo espiritual criado pela modernidade, que desmantelou a consciência mítica e os símbolos numinosos que antes organizavam a vida humana.

Jung, por sua vez, falou sobre “o homem moderno em busca de uma alma“, reconhecendo que a racionalidade científica e o materialismo da era moderna deixaram um vazio espiritual. Esse vazio, é preenchido pelo apelo dos fundamentalismos, que oferecem às pessoas acesso a símbolos arquetípicos e rituais sagrados que não encontram nas instituições seculares modernas.

Assim, a previsão de Mascarenhas sobre o papel das igrejas evangélicas na política brasileira está intimamente ligada ao que Jung descreveu como uma reação à modernidade. Diante de uma ausência de soluções concretas para questões terrenas, como saúde, moradia e bem-estar, a população busca na religião não apenas conforto espiritual, mas também respostas e organização social.

O fundamentalismo religioso, que Mascarenhas previu ganhar força no cenário político brasileiro, oferece um retorno a uma forma de consciência anterior, onde símbolos religiosos e dogmas oferecem sentido e direção para vidas fragmentadas pelas promessas não cumpridas da modernidade.

Esse movimento, no entanto, apresenta riscos significativos para a democracia e para a laicidade do Estado, como Mascarenhas sugeriu. O fundamentalismo, embora ofereça uma resposta à crise espiritual da modernidade, é, em última análise, uma reação regressiva. Jung o chamou de “restauração regressiva do si-mesmo“. Nele a pessoa retorna a formas mais primitivas de consciência religiosa para evitar as exigências emocionais e espirituais da vida moderna. No Brasil, essa regressão tem se manifestado no campo político, onde a bancada evangélica atua de forma conservadora. A bancada promove agendas que, em muitos casos, ameaçam os direitos conquistados pela população na Constituição de 1988.

Bancadas de gado, bovino, ovino e outros

O fundamentalismo religioso, ao apelar para símbolos numinosos e transferências arquetípicas, gera um poderoso vínculo entre líderes religiosos e seus seguidores. Para muitos, especialmente os marginalizados, essa relação preenche o vazio deixado por instituições públicas em colapso. No entanto, como Jung e Mascarenhas apontaram, essa busca pelo sagrado nos templos religiosos conservadores pode levar a uma conformidade que subverte a individualidade e a liberdade que a modernidade deveria ter proporcionado.

Nesse sentido, a crítica de Mascarenhas ao avanço conservador na política brasileira e sua associação com a falência dos serviços públicos encontra eco nas ideias de Jung sobre a necessidade de uma “vida simbólica”. Enquanto a religião fundamentalista oferece respostas rápidas e reconfortantes, ela não promove o desenvolvimento de uma consciência mais profunda e autônoma. Para Jung, o caminho saudável para o ser humano não está no retorno a dogmas religiosos arcaicos. Pelo contrário, está na busca por um desenvolvimento individual que leve em consideração tanto o espiritual quanto o racional.

A previsão de Mascarenhas, juntamente com a análise de Jung sobre o fundamentalismo, sugere que o crescente poder da religião conservadora no Brasil não é apenas uma resposta à falência do Estado, mas também uma manifestação de uma crise mais profunda na modernidade.

O desafio é encontrar formas de atender às necessidades materiais e espirituais da população sem recorrer a respostas regressivas que ameaçam a pluralidade e a liberdade democrática. A superação dos riscos identificados por Mascarenhas e Jung requer um fortalecimento do sistema público de saúde e assistência social, garantindo atendimento digno e inclusivo para todos.

Vigiar e Educar.

Além disso, é fundamental promover a educação crítica e a valorização da diversidade cultural e religiosa. Ou seja, para que a população possa encontrar sentido e apoio sem depender exclusivamente de respostas religiosas conservadoras. Investir em espaços de diálogo inter-religioso e incentivar práticas de espiritualidade que favoreçam a individuação, como propõe Jung. Portanto, caminhos essenciais para equilibrar as necessidades espirituais e materiais em um Estado laico e democrático.

Enquanto a bancada da Bíblia exerce o direito legítimo de representar seus eleitores e suas crenças, é crucial que sua atuação no Congresso Nacional seja monitorada de perto para garantir que não comprometa os fundamentos democráticos do Brasil. Assim, outra vertente do desafio é equilibrar a representação dos valores religiosos no espaço público sem permitir que esses valores se tornem normativos para todos os cidadãos, independentemente de sua fé.

A manutenção do estado laico e da democracia requer a vigilância contínua para que a diversidade religiosa do Brasil seja respeitada e para que o governo continue a servir a todos os seus cidadãos de maneira justa e equitativa.

Jorge Miklos – Psicanalista – Professor e Diretor do Instituto do Imaginário

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

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