3º CADERNO

Entre o Viver e Morrer

Jorge Miklos

Envelhecer é um processo extraordinário em que você se torna a pessoa que você sempre deveria ter sido.”(David Bowie)

A primeira etapa da vida se ocupa como desenvolvimento e realização do “Eu”. A tarefa consiste em deitar raízes no solo do mundo e extrair alimento para o seu crescimento. O objetivo do “Eu” é encontrar um lugar na família e na sociedade (amizades, emprego) e adequar-se com as normas de seu período histórico.

A energia psíquica está voltada para o mundo externo, ou seja, para a adaptação ao ambiente cultural. Nessa fase, a opinião dos outros importa muito uma vez que, no âmbito da consciência, somos constituímos pelo outro. Somos obrigados a fazer ajustamentos devido às demandas físicas da vida. Como falar, como se vestir, como e o que comer, como se relacionar, entre outros comportamentos. Ficamos à mercê da bússola do ethos social.

Carl Gustav Jung. (Img. Web)

O psiquiatra suíço e fundador da Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung, escolheu o termo persona em referência à máscara que no teatro antigo, permitia o ator fazer ressoar sua voz (per sonare) e definir seu papel. Com isso indicava certos traços de seu personagem no palco. No palco da vida, assumimos papéis como os quais podemos até nos identificar e neles acreditar, confundindo-nos, por vezes, como o que somos verdadeiramente. A persona que construímos nos serve não só para nos adaptar e nos proteger do mundo externo, mas, sobretudo para nos esconder do mundo interno.

Adaptações e ensaios

A persona é um dispositivo da psique com o intuito de amoldamento ao mundo. Criamos e desenvolvemos personas em nossas relações com o ambiente de maneira que ela faz o papel de uma proteção ou até mesmo, em alguns casos, de defesa contra o mundo a nossa volta.

O objetivo da primeira metade da vida é estabilizar o “Eu”, de modo que possa tornar-se um recipiente e controlador da jornada humana. Nessa fase, o “Eu” precisa acreditar estar no controle e esta atitude é importante para desenvolver a autoconfiança. Amadurecer e dar conta da vida com autonomia e independência.

A psicologia comportamental estadunidense aponta que o amadurecimento se obtém por meio de quatro marcadores: 1) independência econômica (pagar os boletos e não precisar da mesada dos pais), 2) morar fora da casa dos pais (cuidar da higiene da casa, da alimentação), 3) um relacionamento amoroso estável (no mínimo três anos – isso hoje é quase um milagre, uma vez que a moda é o “amor líquido” – Bauman) e, por fim, 4) cuidar de alguém que não seja você mesmo (filhos ou pets). Cuidar e alguém significa viver para além do ego.

Ou seja, madurecer é estudar, trabalhar, criar um grupo de pertencimento e descobrir que os melhores dias da sua vida são aqueles nos quais você não fica pensando em você mesmo e cultuando suas ilusões narcísicas. Podemos incluir nessa lista que amadurecer é também lidar com as contingências. Ou seja, frustrações, intrínsecas e necessárias ao amadurecimento, uma vez que o cosmos, a sociedade e as pessoas não existem para satisfazer os nossos desejos.

Eu, Eles e as imagens do(s) dEUses

Seguindo a perspectiva desenvolvimentista de Carl Jung, na segunda fase da vida, quando as obrigações adaptativas da vida social foram totalmente ou parcialmente cumpridas, os impulsos espirituais afloram e exigem atenção. Jung chamou atenção que na segunda metade da vida, inicia-se um processo chamado de metanoia, fase que corresponde ao final da vida e ao processo de individuação. Nessa fase, o “Eu” é desalojado da posição central e toma consciência de uma diferente fonte de autoridade. É a vez do “Si-mesmo” – o arquétipo da totalidade – entrar em ação.

Ao benévolo leitor, não familiarizado com o “junguianês”, cabe aqui uma brevíssima digressão acerca do “Si-mesmo” e “Individuação”.

C.G. Jung chamou o arquétipo da totalidade de “Si-mesmo” (Self). Para Jung, o complexo do “Eu” não apenas existe associado a outros complexos da psique. Porém, ele retira sua estabilidade e seu crescimento de um senso mais amplo e completo da totalidade humana, que Jung via como arquetipicamente embasada. O “Si-mesmo”, na visão junguiana, é o arquétipo de um princípio organizador e supra ordinário de individualidade psíquica.

Na condição de psicólogo, Jung notou que esse arquétipo organizador da totalidade era particularmente apreendido e desenvolvido por meio de imagens religiosas. Desta forma compreendeu que a manifestação psicológica do “Si-mesmo” era a vivência de Deus ou da “Imagem-Deus” (Imago Dei) na alma humana.

“Individuação” é um conceito central na teoria Junguiana. Refere-se ao processo em que uma pessoa tenta consciente e deliberadamente compreender e desenvolver as potencialidades inatas da sua psique. O próprio Jung na autobiografia Memórias, Sonhos, Reflexões (1985) inicia o texto afirmando que sua vida foi orientou-se para a individuação:

A individuação se expressa o processo em que o “Eu” individual se desenvolve a partir de um inconsciente indiferenciado. É um desenvolvimento do processo psíquico durante o qual elementos inatos da personalidade, os componentes da imatura psique e as experiências da vida da pessoa se integram ao longo do tempo em um todo, onde funcione bem.

Indivíduo – indivisível e dual

A individuação, conforme descrita por Jung, é um processo através do qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação, o que implica a ampliação da consciência. Portanto, através desse processo, o indivíduo identifica-se menos com as condutas e valores engendrados pelo meio sociocultural no qual se encontra. Entretanto, identifica-se mais com as orientações emanadas do arquétipo da totalidade, “Si-mesmo”: Jung entende que se trata de um processo pelo qual o indivíduo adquire consciência do chamado do “Si-mesmo”.

Entre o Viver e Morrer
os 12 Arquétipos Junguianos. (Img. Web – por Cristiane Rocha Thiel))

Esse chamado estabelece uma meta de desenvolvimento da psique e passa a organizar a vida. Resistências em permitir o desenrolar do processo de individuação é uma das causas do sofrimento e da doença psíquica, uma vez que o inconsciente tenta compensar a unilateralidade do indivíduo através do princípio da enantiodromia.

Esforços necessários do amadurecimento.

Jung ressaltou que o processo de individuação não entra em conflito com a norma coletiva do meio no qual o indivíduo se encontra. Uma vez que nesse processo, no seu entendimento, o ser humano está condicionado pela sua capacidade de adaptar-se e inserir-se exitosamente em seu ambiente.

Assim, deste modo, tornando-se um membro ativo de sua comunidade. Jung afirmou que poucos indivíduos alcançavam a meta da individuação de forma mais ampla.

A individuação também pode ser compreendida em termos globais como o processo que cria o mundo e o leva a seu destino. Portanto não sendo, por isso, uma exclusividade humana.

A individuação, neste contexto, se identifica com o mecanismo de autorrealização, ou primeiro motor do universo:

Nesse sentido, existe no ser humano uma tendência natural de encontrar seu Centro, sua unidade. O sentido natural da vida da alma tem um sentido, uma finalidade, um objetivo; a experiência de unidade. Nossa totalidade vai se realizando de maneira relativa e parcial. O Centro é ao mesmo tempo algo que nos transcende. Isto que Jung chamou de experiência do “Si-mesmo”. Este “Si-mesmo” não é apenas um fim, mas o princípio de toda a vida – a individuação.

Para Jung, o “Si-mesmo” não está apenas interessado nos objetivos e ambições do “Eu”e, por isso, pode frustrar essas ambições para levar a personalidade a viver uma vida mais ampla, aberta aos arquétipos e à força do cosmos.

Preparando-se para ‘morrer’ na sociedade que nega a passagem.

No processo da metanoia o Eu” é transcendido por uma vontade maior e o indivíduo é levado a perceber que a vida tem a ver com forças maiores que invadem a personalidade e exigem expressão.

Na metanoia, a pessoa está empenhada em dar em vez de receber, em sacrificar-se no lugar de lucrar, em perder no lugar de ganhar. É uma perda na qual o espírito ganha. É a perda paradoxal que se encontra no cerne das cosmologias religiosas e espirituais.

De acordo com James Hollis em seu livro A Passagem do Meio: “A metanoia implica morte e renascimento não com um fim em si mesmo; mas como uma transição. É preciso passar pela metanoia para nos aproximarmos mais do nosso potencial e conquistarmos a vitalidade e a sabedoria do envelhecimento maduro. A metanoia representa uma intimação interior para que deixemos a vida provisória e avancemos em direção à verdadeira idade adulta, do falso eu para a autenticidade.” (p. 76)

Porém, em nossa sociedade egocêntrica, pragmática, utilitária e secular (metas, resultados, eficiência, sucesso) o desejo da personalidade de tentar conseguir um estado de consciência mais ampla e mais elevada é frustrado. Existem poucos indícios sociais de que o indivíduo deva passar do “Eu” a uma autoridade mais elevada, porque estes indícios são rotulados como “religiosos” “espirituais” e, por não serem materiais, são rejeitados.

Entre o Viver e Morrer
Estátua de Lao Tze. (Img.: https://www.worldhistory.org/)
Reconectando

Recentemente reli a autobiografia de Carl Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões e me deparei com o último parágrafo no qual ele termina o relato da sua vida:

Quando Lao-Tsé diz: “Todos os seres são claros, só eu sou turvo”, exprime o que sinto em minha idade avançada. Lao-Tsé é o exemplo do homem de sabedoria superior que viu e fez a experiência do valor e do não valor, e que no fim da vida deseja voltar a seu próprio ser, no sentido eterno e incognoscível.

O arquétipo do homem idoso que contemplou suficientemente a vida é eternamente verdadeiro; em todos os níveis da inteligência, esse tipo aparece e é idêntico, quer se trate de um velho camponês ou de um grande filósofo como Lao-Tsé. Assim, a idade avançada é… uma limitação, um estreitamento. E, no entanto, acrescentou em mim tantas coisas: as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem.

Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo. (grifo meu).

Referências

HOLLIS, James. A passagem do meio: da miséria ao significado na meia-idade. São Paulo: Paulus, 1995. Coleção Amor e psique

JUNG. C.G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

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