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RESENHA LITERÁRIA

RESENHA – Livro: Harmonia: Fundamentos de arranjo e improvisação

Autor: Paulo José de Siqueira Tiné

São Paulo, Brasil: Rondó, 2020 – 3ª edição.

Resenha do livro Harmonia, Fundamentos de arranjo e improvisação.

Eusiel Rego[1]

Conheci o Prof. Paulo Tiné, então colega de classe, nos anos ’90, provavelmente lá pelos idos 1993-4 no Alto da Lapa em São Paulo, nas aulas de harmonia, contraponto e estética com o professor Ricardo Rizek. Naquela época minha turma (que contava com alguns músicos profissionais e guitarristas como Ulisses Rocha[2] – Ex-Grupo D’alma) se reduzira tanto (pra variar) que só sobrei eu, e o mesmo ocorreu com a turma do Paulo. Para não perdermos o prosseguimento dos estudos, Rizek achou por bem nos reunir em uma só turma: éramos dois agora, e, tempos depois apareceu mais alguém, mas que não durou muito. Dessa convivência de estudos, leituras e produção musical semanal entre harmonias e contrapontos clássicos acompanhados de análises das obras de Bach, de Brahms a Bartók, entre outros, recordo nossas conversas depois de aulas que chegavam às vezes a 4 horas de duração. Entre elas, lembro-me de Paulo Tiné comentando seus estudos sobre a técnica do Drops, o 4 Way Close, Vamp e os avanços que fizera sobre um livro do professor e guitarrista norte-americano Mick Godrick (que Tiné gentilmente cedeu e fiz uma cópia). Falávamos sobre Pat Matheny, John McLaughlin, Gismonti, Toninho Horta, etc.: eram estilos vivos a serem observados e imitados. Lembro que em Abril de 1996 assisti Pat Metheny Group no Ibirapuera em São Paulo e em outro momento Paulo Tiné ter me dito ter assistido John McLaughlin em uma casa de shows em São Paulo. Dado este brevíssimo histórico, mais para reavivar minha memória e situar um pouco o leitor, vamos ao Harmonia.

O livro “Harmonia: Fundamentos de arranjo e improvisação” de Paulo Tiné não é para principiantes em música e o próprio autor adverte o leitor em sua Apresentação: “Ele é fruto de muitos anos de docência sobre o assunto no ensino superior”. O livro exige, portanto, um embasamento teórico e pré-requisitos do estudante ou do pesquisador. Exige um passo além, algo mais que o simples conhecimento da teoria básica da música. Seu conteúdo está voltado para quem pretende estudar mais seriamente a disciplina harmonia (incluindo improvisação e arranjo) no âmbito da música de Jazz e da música popular.

Refiro-me aqui ao reconhecimento de intervalos, inversões, escalas diatônicas maiores e menores, o conceito elementar de tetracordes, algo sobre a nomenclatura básica e geral dos modos gregorianos, as escalas pentatônicas e seus modos, uma ideia do que vem a ser improvisação, ter, pelo menos, ouvido falar em escalas simétricas e, se possível, algo também sobre os “modos de transposição limitada” (os dois primeiros modos simétricos são abordados no livro) do compositor francês Olivier Messian. Claro, tudo isto está contido no livro e com propostas práticas. Nele estão contextualizadas questões sobre “tríades não diatônicas”, disposição das vozes a partir da sobreposição de 5ªs justas (Spreads ou como se diz “posição espalhada” do acorde), acordes por 4ªs (quartais), funções e nomenclaturas que remetem também à música popular. Para quem tem formação em harmonia clássica, verá que teorias do Jazz construídas nos últimos 50 anos pelos jazzistas e músicos populares topam, lidam, por exemplo, com nomenclaturas dos acordes maiores e/ou menores com 6ª acrescentada (meio-diminuto) – abrindo passagem em uma barreira “teórica” e sistêmica advinda da sobreposição por 3ªs pela harmonia clássica. Para os jazzistas e para o livro Harmonia de P. Tiné essa prática, esse conceito, já é lugar-comum: o primeiro exemplo já inicia com um acorde de Dó maior com 7ª Maior, Sexta Maior e Nona Maior. Novas sonoridades estão, portanto, abertas à especulação do músico investigativo e curioso e se revelam como resultado da profusão de relações entre escala-modo-acorde, um dos núcleos de abordagem do livro.

Assim, o músico ou o estudioso que queira reciclar conhecimentos, ampliar horizontes sonoros e se dedicar ao estudo do livro Harmonia aqui resenhado, mas que está, de uma ou de outra forma deslocado do contexto de um curso regular de harmonia (particularmente do Jazz), necessitará sim, buscar e preencher, com o livro como um guia, alguns pré-requisitos teóricos importantes e estar, obviamente, disposto ao estudo. Claro está: quem estudou harmonia clássica, precisará, caso não o tenha feito, reciclar sua práxis e interpretação musical, agregando novas ferramentas de percepção e análise a partir do legado harmônico sonoro e melódico oferecido pelo Jazz moderno e a música popular das últimas décadas. Senão, como capturar por meio da percepção o sentido musical de harmonias tão repletas de ‘ex-tensões’? Por isso o livro trata, de chofre e obrigatoriamente, do antigo cuidado com as dissonâncias – as “notas evitadas!” – e suas diversas formas de tratamento. E agora, em especial, o que não é novo para o sistema tonal, vamos lidar com a “áspera” 9ª menor, uma nova balizadora do conceito de dissonância no Jazz: – “Era só um jogo!”… “Fique tranquilo, que [a dissonância, a tensão] passa logo!” (Schönberg, Armonia, p.50-1). O livro explora isso exaustivamente, porque a estética do Jazz e da música popular assim exige.

Além do mais, o livro traz abordagens sobre “velhos” tijolos da construção tonal, dominantes e subdominantes secundárias e suas extensões, modulações, empréstimos modais, o acorde napolitano, o conceito de SubV, SubII e o conceito criado por Arnold Schönberg: a monotonalidade. Nele surgem ideias e estruturas cadenciais observadas com análises e propostas práticas para exercícios de harmonização de melodias tonais e modais, elaboração de encadeamentos com tétrades e a proposição de cadências, etc. Tudo numa ordem predefinida no Sumário do livro, que progride até o fechamento do ciclo de modulações às tonalidades mais distantes chegando a uma recapitulação conceitualmente renovadora do universo modal.

Há, obviamente, farto material de referência sobre todos estes assuntos em outros tratados clássicos de harmonia e que invadiram o século XX, inclusive advindos da mais recente história do Jazz. Tratadistas clássicos como Walter Piston, A. Schönberg, H. Shenker, Max Reger, J. Zamacois, V. Persichetti se põem aqui lado a lado com teóricos do Jazz como Mark Levine, Sammy Nestico, o compositor e pedagogo canadense Barry Harris, a compositora jazzista norte-americana Maria Schneider, George Russell com seu essencial conceito do Lídio Cromático, entre outros. E, o que é bom, é que o Harmonia em questão abraça, abarca em toda sua extensão, além das emblemáticas sonoridades trazidas pelo Jazz “equidistante” de John Coltrane, do Modal Jazz de Miles Davis e Bill Evans, entre outros, também harmonizações da rica música popular e folclórica do Brasil e como não poderia deixar por menos, abre para as sonoridades musicais de Tom Jobim à Milton Nascimento. São composições surgidas a partir de meados do século XX, a partir do advento da Bossa Nova e dos movimentos sócio-musicais e artísticos subsequentes que resistiram no Brasil (e no mundo) a partir dos anos 1960-70.

Além do rico material colecionado nas pesquisas e análises, o Harmonia também oferece ao estudante leitor algo sobre conceitos jazzísticos fundamentais (técnicas) para a compreensão da disposição de vozes como o 4 way Close, Drops, Voice leading, o conceito de acordes em blocos e procedimentos harmônicos estruturais como o Coltrane Changes, Vamps, turnaround, cadências, Tríades na Camada Superior (TCS), etc. Todos estes conceitos estão presentes com proposições de exercícios e são partes estruturantes do livro. Infelizmente, por motivos de direitos autorais que certamente escapam à vontade do autor, não constam no livro as melodias (temas) sobre os exemplos citados e as propostas harmônicas dadas. Mesmo assim, diante desta carência do importante elemento melódico para o estudo da harmonia, ele contorna o problema (e aqui entra a Internet como valiosa companheira multimídia) indo muito além de outros tratados nacionais clássicos como o livro “Harmonia Funcional” de Zula de Oliveira – e outros mais, citados na Bibliografia. Em outras palavras, o Harmonia de Paulo Tiné torna-se necessário à formação, em língua portuguesa, mais estruturada de estudantes, músicos e musicistas em nosso país, contribuindo na formação de profissionais que atuarão direta ou indiretamente com música popular de qualidade. Acredito que, em breve, tais técnicas e nomenclaturas se integrarão gradativamente à disciplina Harmonia no contexto acadêmico universitário.

O que se objetiva todo o tempo no livro é embasar o estudante com amplo material proveniente do Jazz e da música brasileira tanto para a improvisação, quanto para rudimentos e técnicas de arranjo em música popular, especialmente Big Band, uma especialidade do autor.

E eis aqui, portanto, o desafio desta resenha: como argumentar em pouco mais de poucas  laudas, de maneira simples e acessível ante um objeto tão amplo, técnico e complexo? A essa questão, poderia antecipar outra: a quem se destina o argumento? – Aos especialistas!

 O Harmonia é um livro pensado, a meu ver, com dois propósitos: 1: sintetizar o que estava disperso em nossa cultura musical e popular mais recente para 2: expor com fins didáticos tanto quanto possível, as experiências harmônicas do Jazz e da música popular (gostaria de incluir aqui também a possibilidade de abordagem harmônica do Latin jazz ou Jazz latino) nascidas aproximadamente na segunda metade do século XX e mais detidamente os últimos 50 anos. O livro é resultado de uma ampla via de mão dupla, uma experiência que só deve funcionar em dois sentidos: assim, o mundo acadêmico tem o dever de devolver o material colhido “lá fora” para, organizado, retornar à vida “lá fora”, à sociedade que o produziu, como retribuição consciente, para que o novo sempre venha, sempre continue a surgir.

Grosso modo, sua organização interna pode ser traçada em dois momentos cruciais: a proposta de “Construção de encadeamentos” como prática efetiva dos assuntos e procedimentos técnicos teóricos tratados em toda a primeira parte do livro: tal prática sintetiza, pedagogicamente, a 1ª parte. Já no capítulo 31 com o tópico “Modulação às 2a, 3a e 4a tonalidades no círculo das quintas (homônimas)” inaugura-se, a meu ver, uma 2ª parte. Porque são cruciais estes pontos? Porque a modulação foi o meio necessário e o mote essencial que impulsionou a busca pelo sistema de temperamento “Bem” igual inaugurado por J.S.Bach e que possibilitou a expansão das ideias musicais tonais do ocidente. Tal expansão, historicamente, abarcou e trouxe cada vez mais perto o que estava distante. Assim parece estar organizado o livro: a modulação como marco. Foi assim a conquista secular destes ciclos harmônicos: começou com seus parentes próximos, diatônicos, e depois abarcou acordes secundários e então ampliou como se convencionou chamar os “empréstimos modais”. Tudo foi trazido para a hegemonia de um centro tonal, um princípio “absoluto”, alargou-se então para a busca de novos cromatismos, os acordes errantes invasores, modulou-se muito em muitas direções e, por fim, criamos novos conceitos do que havíamos esquecido lá atrás, em nossas origens modais. Não aceitamos mais as relações submetidas ao domínio dualista D-T (Dominante-Tônica). Neste sentido, a história da música ocidental é também a história do Jazz e da música popular do ocidente e grosso modo, como dito anteriormente, esta história, este percurso parece ser um mapa árido, porém prazeroso e visitado pelo livro de Paulo Tiné.

Uma taxonomia das tipologias harmônicas (o termo ‘tipologia”, aplicado aos acordes parece ter sido cunhado nas aulas de harmonia ministradas pelo professor Ricardo Rizek): uma classificação de grupos de acordes que se identificam, em princípio por sua constituição interna, pelo “lugar” (Grau) que ocupam na escala-modo e, por fim, por sua qualidade sonora intrínseca e que acabam por configurar determinadas relações sonoras e funções harmônicas contextualizadas. Exemplo? O acorde meio-diminuto ou acorde menor com 5ª diminuta e 7ª menor: um tipo de acorde comum aos campos harmônicos maior e menor (daí seu “natural” encaixe diatônico), mas que Richard Wagner, por meio de um truque, um argumento retórico que só a enarmonia poderia propiciar elegeu, melhor, desvelou para dar vida musical a um personagem mítico e extramusical: o acorde de Tristão. Sua sonoridade e contexto são tipológicos! Temos então tipologias de acordes que foram cristalizadas historicamente: o acorde maior, o menor, o aumentado, diminuto, meio-diminuto, o tipo dominante, o cluster, o quartal, o “quintal” ou acorde em 5as quintas sobrepostas (não são as “quintas de caça” do século XVIII!) – e talvez haja uma caracterização moderna do acorde menor com 7ª maior: uma tipologia já autônoma, cristalizada? Em todo caso, todas aquelas tipologias hoje são autônomas, – autonomia conquistada ao longo da história, como bem frisou Tiné – foram cristalizadas historicamente no conjunto e no contexto de obras produzidas tonalmente, em pleno “reino de Dó maior!”. Atenção: o livro Harmonia aqui abordado lida com harmonia tonal e em alguns casos pode chegar às fronteiras do tonal! Pois bem,são estas tipologias sempre acompanhadas de suas escalas-modo que Tiné expõe em seu Harmonia. O constante esforço, no contexto da música de Jazz, foi encontrar uma ou mais vias de comunicação entre verticalidade e horizontalidade em música, pontos de conexão entre acorde e escala(s)-modo(s) e isto é, em harmonia, basilar. Essa forma de comunicação tem sido uma busca incessante na música ocidental e vem desde seus primórdios: a escala como um atributo cronologicamente dado pela Natureza Naturada (Spinoza), historicamente anterior ao acorde e este, ontologicamente anterior à escala-modo. Assim foi a busca dos compositores da melodia acompanhada dos séculos XVIII e XIX, assim tem sido com a música popular e o Jazz contemporâneo. A horizontalidade (o âmbito sonoro dado pela escala-modo) constante do discurso da música popular necessita de pilares que a sustente. Estes pilares (os acordes e seus encadeamentos) promovem, de tempos em tempos, como nos últimos 50 anos trabalhados no livro, adequações e inadequações ao gosto social e musical da nossa era, a era da eletrônica digital, da música de massas e das mídias do século XXI.

Em um primeiro momento, não é difícil verificar que o livro Harmonia está basicamente voltado para os alunos que acompanham o curso ministrado pelo autor na universidade e por isso mesmo reflete, como afirma o próprio Tiné em sua Apresentação, esta condição. Porém, ao adentrarmos os conceitos e propostas, notamos que o autor, acaba por nos legar um importante guia, um mapa. Com os recursos atuais de pesquisas disponíveis na Web com seus abismais bancos de dados sobre tudo e todos, podermos traçar nosso próprio roteiro de estudos, tirar dúvidas online, pesquisar e ampliar nossa percepção sonora com audições disponíveis e materiais de apoio em praticamente tudo que é citado no livro. Essa é uma boa nova na área de educação musical para século XXI e também para o ressentido músico que não pôde ou não pode trilhar cursos regulares de harmonias (há várias!).

Para finalizar, o livro Harmonia do professor Paulo Tiné foi construído ao longo dos anos com experimentações, teorias e práticas musicais que intentam embasar o estudante e o músico já atuante por meio de experiências relevantes aos processos de construção da artesania musical e da elaboração harmônica do Jazz e da música popular. Tanto para a desenvoltura da improvisação, como já foi dito, quanto para a análise e entendimento de rudimentos e técnicas de arranjo em música popular, ele é, seguramente, um mapa. O livro esboça linhas gerais de lugares, de harmonias e experimentações musicais conscientes já visitadas pelo autor. Oferece um conjunto de indicações que poderá propiciar um estudo criativo e prazeroso na busca de outras sonoridades musicais. Harmonias! …


[1] Violonista, professor e músico com Mestrado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP).

[2] Prof. Coordenador de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo.

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

5 thoughts on “RESENHA LITERÁRIA

  • Paulo C.Moura

    Parabéns ao Tiné por esse trabalho de fôlego; e parabéns ao amigo Zica (peço licença para essa aproximação carinhosa) pela bela resenha. Sucesso!

    • Há um que de Literatura que se encaixa muito bem à Música – ambas parecem fazer parte do repertório cultural dos autores (do livro e da resenha).

      • Eusiel

        A arte é uma. Só mudam os meios. Acho que essa ideia foi Robert Schumann quem escreveu.

    • Eusiel

      Na boa, Paulo Moura, obrigado pelo comentário, apesar do apelido ter perdido algum sentido nestes tempos pandêmicos, algum carinho ainda se mantém, né?. Forte Abraço desde terras frias! Parodiando Drummond, Terras “Noventa por cento de [frio] nas calçadas. Oitenta por cento de [frio] nas almas” (CDA – Confidência de Itabirano). – Eusiel

    • Eusiel

      Na boa, Paulo Moura, obrigado pelo comentário, apesar do apelido ter perdido algum sentido nestes tempos pandêmicos, algum carinho ainda se mantém, né?. Forte Abraço desde terras frias! Parodiando Drummond, Terras “Noventa por cento de [frio] nas calçadas. Oitenta por cento de [frio] nas almas” (CDA – Confidência de Itabirano). – Eusiel

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