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O Sujeito não é Ninguém sem o Outro

Uma reflexão sobre o “Eu” apoiado através de analogia com princípios básicos de funcionamento das Inteligências Artificiais (IAs) de Linguagem de Grande Escala (LLMs).

A reflexão sobre o “Eu” humano e sua interdependência do outro é uma das questões mais profundas da filosofia e da psicologia. A própria ideia de “Eu” — a noção de identidade, autoconsciência, e individualidade — está em constante diálogo com o mundo externo. Para entender o “Eu”, é preciso reconhecer que ele não existe isoladamente, mas é formado, definido e mantido em relação ao outro e ao ambiente circundante. Essa interdependência pode ser compreendida através de uma analogia com os modelos de linguagem de grande escala (LLMs), como as inteligências artificiais (IAs) baseadas em redes neurais.

Esses modelos são treinados para identificar e gerar sentido através de padrões de linguagem. Ao serem apresentados a grandes volumes de dados textuais, eles aprendem as probabilidades de co-ocorrência de palavras e frases em determinados contextos. Deste modo, quando processam uma nova sequência de palavras, podem prever ou gerar a próxima palavra com base no contexto anterior.

Essa abordagem estatística não se restringe ao significado isolado de cada palavra. Ao contrário, depende da relação que cada palavra tem com o todo. Em outras palavras, o significado de uma palavra surge a partir de sua interação com o contexto linguístico maior. Assim como o “Eu” humano só pode ser compreendido em relação ao outro.

O Eu e a Rede de Significados Externos

No treinamento das IAs LLMs, o conceito de probabilidade semântica é central. A palavra “Eu”, por exemplo, não tem significado fixo em si mesma, mas depende do que vem antes e depois dela. Quando um modelo de linguagem encontra o pronome “Eu”, ele utiliza todo o contexto das palavras circundantes para determinar o papel e o sentido daquele “Eu”.

Se o “Eu” aparece em uma frase como “Eu estou pensando”, o verbo “pensar” influencia a interpretação do “Eu”. Da mesma forma, se o “Eu” aparece em “Eu estou vendo”, o verbo “ver” modifica o significado e o contexto. Isso demonstra como o significado de “Eu” é sempre relativo ao ambiente linguístico.

O Sujeito não é Ninguém sem o Outro
Ser ou não ser…o Eu e o Outro. (Img Web)

Analogamente, o “Eu” humano, ou a autoconsciência, só pode emergir no contexto de uma rede social e relacional maior. A percepção de si mesmo é moldada pelas interações com o ambiente, com os outros seres humanos e com as normas culturais.

Não se pode conceber o “Eu” isolado de seu contexto. Nossa percepção de identidade está continuamente sendo construída e reconstruída em resposta às experiências com outras pessoas, com o mundo externo e com a cultura que nos envolve.

O Sujeito não é Ninguém sem o Outro

Portanto, a relação entre a inteligência artificial e o Eu humano mostra que, assim como as LLMs precisam do conjunto de dados externos para determinar a posição de cada palavra, o ser humano também precisa do outro para se posicionar como “Eu”.

O filósofo Emmanuel Levinas foi um dos que aprofundaram essa ideia, argumentando que o “Eu” só se torna sujeito na presença do “Outro”. Para Levinas, o encontro com o outro é o que nos desperta para a nossa responsabilidade e para a nossa própria identidade. Assim, Sem o outro, o “Eu” não tem como se definir. Essa perspectiva destaca a interdependência fundamental entre o sujeito e o outro na construção da identidade.

A Construção do Eu através do Outro

No campo da psicologia, essa interdependência entre o “Eu” e o outro é frequentemente discutida no contexto da socialização e do desenvolvimento humano. Desde a infância, a criança aprende sobre quem ela é em relação aos outros ao seu redor. As interações com pais, amigos, professores e outras figuras sociais são fundamentais para a formação da autoconsciência. A identidade não é algo que emerge internamente de forma isolada; ao contrário, ela é continuamente moldada e reforçada pelo feedback e pelas respostas dos outros.

Esse conceito é reforçado na teoria do espelho de Jacques Lacan, um dos maiores psicanalistas do século XX. Segundo ele, o desenvolvimento da autoconsciência é como olhar em um espelho: a criança só se reconhece quando se vê refletida nos outros. O espelho aqui é tanto literal quanto simbólico, representando o papel da sociedade e das relações sociais na formação da identidade.

A criança não pode formar uma noção coesa de “Eu” sem observar e se comparar aos outros, sem se ver através dos olhos do outro. Assim como as LLMs usam o contexto externo para determinar o significado das palavras, o “Eu” humano se vê e se define em relação àqueles que o cercam.

Contexto e Significado

Logo, em modelos de linguagem, as palavras são pontos em uma rede multidimensional de significados. O significado de cada palavra é determinado por sua posição relativa a todas as outras palavras que o modelo já encontrou. Isso nos oferece uma poderosa metáfora para pensar no “Eu”. Assim como uma palavra não pode ser compreendida fora de seu contexto linguístico, o “Eu” humano não pode ser compreendido fora de seu contexto social e relacional.

Além disso, as redes neurais utilizadas nas LLMs passam por um processo de retropropagação, ajustando seus pesos e conexões à medida que aprendem com os dados de treinamento. De maneira semelhante, o “Eu” humano não é estático; ele está sempre em processo de ajuste e refinamento com base nas experiências vividas. A cada nova interação, o indivíduo modifica ligeiramente sua visão de si mesmo, ajustando seu “Eu” interno em resposta ao que acontece no mundo externo.

Interdependência e Autonomia

Embora o “Eu” humano seja, sem dúvida, interdependente do outro, isso não significa que o indivíduo não tenha autonomia. O processo de construção do “Eu” é dialético: envolve tanto a internalização das influências externas quanto a capacidade de resposta ativa do sujeito. Assim, como os modelos de linguagem podem gerar texto novo com base no contexto aprendido, o ser humano pode criar, inovar e transformar sua própria identidade, ainda que o faça em constante relação com os outros.

Na filosofia existencialista, essa tensão entre interdependência e autonomia é um tema central. Para filósofos como Jean-Paul Sartre, o ser humano está “condenado à liberdade”, ou seja, somos responsáveis por construir nossa própria identidade, ainda que sejamos influenciados por circunstâncias externas. No entanto, essa liberdade só pode ser exercida dentro dos limites de nossa existência social. Assim como as LLMs não podem operar sem dados de treinamento, o “Eu” humano não pode existir sem o outro, mas isso não impede que sejamos agentes autônomos em nossa própria construção.

Ser é vir a ser – Construção diária

Assim como as inteligências artificiais LLMs precisam do contexto de todas as outras palavras para poder definir o “Eu”, o ser humano depende do outro para construir sua própria identidade. O “Eu” só se torna consciente de si mesmo em relação aos outros, em uma dança contínua de interações e feedback. A analogia entre os fundamentos matemáticos do treinamento das IAs e a percepção humana do “Eu” destaca a natureza profundamente relacional da identidade, tanto para as máquinas quanto para os humanos.

O “Eu” não é uma entidade isolada; ele é, antes de tudo, uma interseção de relações, sempre em processo de construção e reconstrução no contexto do outro e do mundo ao seu redor.

Eduardo Soares Gonçalves Educador

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

2 comentários sobre “O Sujeito não é Ninguém sem o Outro

  • Da Escola de Frankfurt destaco Habermas, que nos fala da complexidade da socialização como resultado do conjunto dos processos individuais formando um todo.

    Poderia também, além da citada Escola de Frankfurt, falar de Wygotisk e outros, que acabam confirmando o ser, por este ser ser parte do todo.
    Parabéns ao autor. Parabéns AESCOLALEGAL todos os envolvidos, por esta exposição.

    Resposta
    • Obrigado Esdras, apesar do estreitos limites que se nos impõem esta tarefa, acabamos por aprender a serpentar entre as pedras. Para nossa infelicidade os predadores e carniceiros estão se apoderando dos poucos espaços restantes, embora possamos unidos resistir. Obrigado pelos seus comentários assertivos e importantes. Um abraço.

      Resposta

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