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Professor Polvo Ensina o Que?

O filme “Professor Polvo” acaba de ganhar merecidamente o Oscar de melhor documentário do ano. Foi um dos filmes que mais gostei em 2021, e está disponível na Netflix.

Jonas Melman

São Paulo, 21/05 de 2021.

2 Minutos

O narrador documentarista, Craig Foster, logo se apresenta e fala de seu drama pessoal. Conta que nos últimos dois anos, sua vida estava aos pedaços, não dormia bem. Ele e sua família estavam sofrendo. Sem projetos ou propósito, sentia que precisava mudar a si mesmo e encontrar um sentido para sua vida.

Buscando um pouco de paz interior em sua casa no litoral da África, Craig começa a realizar mergulhos numa floresta das algas gigantes que conhecia desde a sua infância. Em um desses mergulhos, seu olhar é capturado por um polvo, na verdade uma “polva”, que desde o primeiro contato mostra sua inteligência na arte da imitação e da invenção de estratégias para despistar seus predadores. Desse encontro começa a nascer um vínculo inusitado que irá transformar sua mente e curar suas feridas.

O narrador é fisgado pela astúcia do animal e passa a visitá-lo solitariamente todos os dias. Esse molusco, ágil, curioso, flexível, líquido, possui uma inteligência equivalente à de um cão, e é capaz de aprender novas estratégias de sobrevivência à medida que suas experiências de vida vão se sucedendo.

Craig é convidado a entrar na floresta das algas gigantes não apenas como um observador “de fora”, que apenas registra e analisa os fatos. Para ganhar a confiança da polva e fazer parte integrante daquele ecossistema, ele precisou começar a aprender a pensar como um polvo.

As cenas do filme revelam o nascimento de uma relação afetiva. Mas será possível falar de afetividade de um molusco? Olhando as imagens das interações entre eles, tudo sugere que existe essa possibilidade. A medida que o filme se desenrola, a conexão entre eles se fortalece e os limites usuais entre polvos e humanos são ultrapassados nesse ambiente natural e selvagem.

Craig é convidado a se relacionar com sua “amiga” respeitando e aceitando seu universo sem interferir nos acontecimentos. Emerge um vínculo inusitado. Ele se “apaixona”, e mergulha nos estudos científicos e práticos para aprender sobre a vida dos polvos. Seguindo os fluxos do mar, registra os acontecimentos, convivendo com os seres da floresta de algas como quem é parte integrante daquele ecossistema.

O que anos de experiência ensinam

Fiquei encantado com essa polva e com essa possibilidade de interação, assim como tantas pessoas que assistiram ao filme. Eu trabalho há mais de 30 anos como psiquiatra e psicoterapeuta, e nesse cotidiano de ajudar aqueles que sofrem psiquicamente, meu esforço é no sentido de acolher e aceitar as pessoas como elas são, e na condição de vida em que se encontram.

Professor Polvo Ensina o Que? - Filme traz profundas reflexões sobre o que somos, e por que somos?
Professor Polvo Ensina o Que? – Filme traz profundas reflexões sobre o que somos, e por que somos? (Foto: Internet)

Esse desafio é enfrentado por muitos profissionais de diferentes áreas de atuação: profissionais da saúde e da educação, mas também por cuidadores de crianças, idosos, pessoas em situação de vulnerabilidade física ou social. A vida parece tão forte quando estamos bem e saudáveis, mas em outras situações ela é tão frágil! O vírus da Covid mostrou toda a fragilidade humana, todas as mazelas e contradições possíveis e inomináveis.

Nem sempre é fácil aceitar o outro que é muito diferente de nós. A diferença perturba nosso sossego. Nem sempre é fácil estar disponível para uma pessoa cuja diferença causa desconforto, estranhamento, atritos, raiva e conflitos. Algumas vezes, no trabalho ou na vida cotidiana, não consigo me relacionar com algumas pessoas de forma saudável e empática.

Percebo que existe algo na minha mente que julga e critica as pessoas, que cria uma distância que separa, e quando isso ocorre, fico na defensiva e não consigo verdadeiramente aceitar a pessoa como ela é. Nesse caso, a possibilidade de dialogar, de construir pontes de comunicação fica comprometida.

Em nosso tempo, evidentemente que essa dificuldade está praticamente generalizada nas relações sociais. Vivemos uma época de acirramento da polarização no campo das ideias e dos comportamentos, que resulta muitas vezes em violência. Onde não é possível a palavra e o diálogo, nasce a violência. É difícil confiar e se abrir para as pessoas.

Sua mente mente?

Estamos nos isolando cada vez mais. No mundo que construímos e vivemos, em muitas ocasiões, os outros são potencialmente uma ameaça. Depois de anos de prática profissional, cheguei à conclusão que o ser humano é um bicho esquisito, cuja mente frequentemente não funciona bem. Queremos ser felizes em nossas relações, mas nossos pensamentos e atitudes não ajudam, e com mais ou menos consciência, erguemos barreiras para formar relações saudáveis, quando não criamos inimigos para batalhar.

E por que isso acontece? Por que não possuímos uma mente de aceitação voltada para o diálogo? Por que, em realidade, vivemos muito mais para nós que para os outros? A mente humana é estruturalmente egoísta?

Quando era mais jovem, eu tinha muita dificuldade para aceitar que as pessoas tinham ideias diferentes das minhas. Eu sentia que minhas ideias eram mais corretas do que as dos outros, e que tinha que lutar por elas, e acabei gerando muitos conflitos desnecessários com as pessoas.

Os anos passaram, e hoje entendo melhor como funciona a mente humana. Desde seu nascimento cada ser humano começa a construir seu mundo psíquico. A mente humana é uma espécie de câmera fotográfica automática que tira fotos de tudo que pertence ao mundo. Utilizando o corpo e todos os seus sentidos, o homem tira fotos e produz vídeos de tudo, de todos os acontecimentos, e guarda em seu cérebro. Com essas fotos e vídeos armazenados ao longo de toda sua existência, ele formula suas narrativas que organizam seu mundo individual.

Nesse mundo fotográfico ele vive, e essa criação reflete sua identidade em construção. Cada pessoa tem seu mundo pessoal de imagens e de representações armazenadas, formado a partir de suas memórias registradas. Assim, tudo o que experimentamos está gravado dentro da nossa mente. É um pequeno universo que somente a própria pessoa possui, e que lhe confere uma singularidade. Cada pessoa é única porque cada um de nós tem sua própria mente.

A pessoa constrói seu mundo, vive dentro dele, e passa a vida protegendo e cuidando de sua criação individual como se fosse um tesouro. O autor desse mundo é o próprio eu. Estamos narcisicamente atrelados com essa criação, e por essa razão somos autocentrados e defendemos tanto nossas ideias e interesses.

Sinto uma certa tristeza quando constato que cada de nós vive no seu próprio universo fotográfico. Esse funcionamento da mente nos isola e nos separa do mundo como ele realmente é. O mundo verdadeiro não é uma fotografia.

Nosso mundo mental não tem vida, é um mundo fotografado, é uma cópia do mundo. A foto de uma flor não tem perfume, não tem textura, não desabrocha. É apenas uma representação da flor real. O ser humano vive numa espécie de sonho que parece real, mas na verdade, ele vive dentro desse mundo ilusório que criou com sua mente. Trata-se de uma espécie de sonho que sonhamos e não percebemos que estamos sonhando porque o mundo das fotos está sobreposto ao mundo real. Esse mundo mental parece real, mas não é. Somente nos damos conta que estamos sonhando quando despertamos.

Nossa mente está cheia de fotos gravadas que produzem emoções e pensamentos sem cessar. Estamos muito colados com nossas crenças e pensamentos, mesmo que eles sejam distorcidos ou doentios. Estamos identificados com nossas memórias, e elas nos comandam e determinam nossas escolhas. Uma mente repleta de fotos não para de pensar. Essa é a razão porque é tão difícil silenciar a mente. E quando os pensamentos não cessam e começam a atacar o bem-estar do indivíduo, surge o sofrimento.

Aprendemos com o mundo e a vida. O quer fazer com nosso álbum de fotografias?
Aprendemos com o mundo e a vida. O quer fazer com nosso álbum de fotografias?
(Foto: Internet)

Na minha experiência profissional, constato que boa parte do sofrimento é gerado pelos pensamentos que a própria pessoa produz a partir de suas memórias. Uma pessoa que está numa situação difícil, preocupada e insegura com o risco da pandemia, com questões familiares, financeiras ou profissionais, pode produzir um sem número de pensamentos que atacam seu bem-estar e podem lhe fazer mal. Assim nascem os sintomas de depressão, pânico, estresse, ansiedade, etc.

Para aliviar o sofrer é necessário aquietar essa mente pensante e esvaziá-la desse mundo de fotos. Para ser capaz de ver o mundo com clareza e lucidez é necessário limpar a mente. Para aliviar o sofrer é preciso questionar a importância que damos a esse eu individual, e esvaziá-lo do poder que damos a ele.

O que a professora polva tem a nos ensinar?

A polva mostra ao protagonista e a todos nós a necessidade de esvaziar e silenciar a própria mente para se abrir ao mundo do outro, para viver de forma integrada com o mundo. O esvaziamento do próprio eu permite que a pessoa se torne mais sensível e empática ao outro. O silêncio de si contribui para ver o mundo e o outro com nitidez. Deixar de lado o eu individual ajuda a brotar a gentileza, o respeito.

Craig que olhava o mundo do lado “de fora” começa a se tornar parte integrante daquele grande sistema vivo. Ele não está mais na posição de um observador separado do seu objeto a ser observado e analisado. Ele está integrado, conectado com os fluxos da natureza, e assim consegue perceber e experimentar a presença da Grande Mente da Floresta. As infinitas conexões entre os seres e o ambiente se revelam, e ele percebe que existe um cérebro invisível que mantem tudo que é vida em um equilíbrio há milhões de anos. Cada ser vivo é importante nessa trama que garante a vida.

# Se você se interessar pelo assunto, posso sugerir um método de meditação que me ajudou a compreender com mais profundidade a mente humana e a limpar minha mente.

Jonas Melman – Psiquiatra e Psicoterapeuta

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

3 thoughts on “Professor Polvo Ensina o Que?

  • Rose Jurjuck

    Adorei este filme! Obrigado pelas dicas.

  • Carlo Alberto F. Carvalho

    Dr. Jonas, gostei das suas orientações. Memórias devem ser guardadas qdo. tem importância.
    O filme também é bem legal.

  • Rita J Leria Aires

    Boas reflexões! Gostei.

Fechado para comentários.