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Papel da Educação Indígena

Uma das tarefas nossas como educador é esta: decifrar o mundo opressor para o oprimido; por isso que esse trabalho é político”. (Paulo Freire).

 

Arnaldo F. Cardoso

São Paulo, 02/02/2023.

5 Minutos.

Se a criação do Ministério dos Povos Indígenas com a Ministra Sônia Guajajara (PSOL) à frente e a FUNAI presidida pela advogada Joênia Wapichana (Rede), duas combativas mulheres indígenas, representam um avanço político extraordinário para a defesa dos direitos dos povos indígenas e de seu lugar na vida política e cultural do país, a gravíssima situação do povo Yanomami evidenciada pela viagem emergencial do presidente Lula à Boa Vista (RR), em 21 de janeiro, que resultou na decretação de emergência de saúde pública e estabelecimento de plano de ação emergencial interministerial na Terra Indígena Yanomami, escalou para o rol de prioridades da agenda política nacional a necessidade de uma política indígena nacional que efetivamente produza avanços para a segurança e qualidade de vida desses povos que representam e mantém viva parte importante da ancestralidade do povo brasileiro.

Vencer a emergência  – Combater a malária, as doenças provocadas pela contaminação dos rios, a desnutrição e outros males correlatos é a tarefa número um, conjuntamente com as ações de segurança e reapropriação pelos indígenas de terras ocupadas ilegalmente por garimpeiros que deverão ser expulsos.

As medidas que estão sendo encaminhadas pelo governo, com orientação expressa de agilidade pelo Presidente da República, sinalizam que, vencida a situação emergencial, outras ações orientadas por uma revitalizada política indigena devem ser iniciadas. Uma delas é garantir as condições para uma educação indígena como instrumento de autonomia.

Educação indígena, a visão freireana –

O apreço de Paulo Freire pela linguística se faz notar em toda a sua pedagogia. Para a educação indígena ele propunha que as palavras-chaves escolhidas para encaminhar a alfabetização deveriam emergir do universo cultural da etnia com a qual a experiência seria desenvolvida, propiciando assim uma reflexão crítica sobre a realidade. A participação do educador Paulo Freire na 8ª Assembleia Regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ocorrida de 16 a 20 de junho de 1982, em Cuiabá, cujo tema era “Educação libertadora entre os índios”.

Papel da Educação Indígena
Paulo Freire e a Educação dos Oprimidos. (Img Web)

Desse encontro foi gerado um importante documento intitulado “Um diálogo com Paulo Freire sobre educação indígena” que ainda oferece importantes orientações para essa significativa ação. Das falas de Paulo Freire no encontro, destacamos os dois trechos abaixo:

Acontece que a escola vive intensamente através de nós as contradições que se dão na sociedade. A escola, de um lado, reproduz a ideologia dominante, mas do outro lado se dá também, independentemente do querer do poder, ela se dá no jogo das contradições.

E ao fazer isso, ela termina por contradizer também a ideologia que ela deveria por tarefa reproduzir. Na medida em que a gente compreende o papel da escola, a relação entre a escola e a sociedade e a estrutura dominante em termos dinâmicos, dialéticos, contraditórios e não mecanicistas, a gente então compreende melhor isso” (p.125).

Uma das tarefas nossas como educador é esta: decifrar o mundo opressor para o oprimido; por isso que esse trabalho é político“. (p.132)

A consciência despertada 

Foi nesse contexto histórico e de desenvolvimento conceitual e metodológico que se processou a experiência da indigenista e escritora italiana Loretta Emiri, natural da região da Úmbria. Seu trabalho entre os Yanomami foi iniciado através da Diocese de Roraima, Missão Catrimâni e Operação Anchieta (OPAN), quando também foi iniciada na pedagogia de Paulo Freire.

Loretta conta que desde então, sua vida foi atravessada pelo vínculo criado com a causa indígena brasileira. Sua mais recente passagem pelo Brasil foi no ano passado, para participar da Feira do Livro de Roraima. quando se encontrou com escritoras e ativistas indígenas, dentre as quais Joenia Wapichana (Rede), primeira indígena a ser eleita Deputada Federal e primeira advogada indígena do Brasil, hoje Presidente da Funai.

Papel da Educação Indígena
A indigenista Loretta Emiri, apresenta livro, sobre suas pesquisas entre indígenas amazônicos. (Img Web.)

Loretta, cada vez menos disposta a acumular, cedeu sua coleção de mais de 200 artefatos, compreendendo ornamentos/plumários indígenas, documentos, fotos, livros, reportagens, aos museus italianos Civico di Modena, Carta di Civitanova Marche e Università di Bologna.

De malas prontas para Boa Vista, disse em diálogos mantidos na última segunda e terça-feira, não ter data para voltar.

Entrevista com Loretta Emiri:

Arnaldo Cardoso – Em artigo recente você avaliou que os cursos de formação de professores indígenas realizados na época, foram importantes no processo constituinte de 1986 no Brasil que culminou com a promulgação em 1988 da Constituição Cidadã.

Na sua avaliação, os artigos acerca dos indígenas – Capítulo VIII, “Dos Índios”, Artigo 231 e Capítulo III, “Da Educação, da Cultura e Do Desporto”, Artigo 210 – produziram nos últimos 25 anos as devidas políticas públicas?

Loretta Emiri – Os documentos finais produzidos durante os cursos e encontros de professores indígenas eram por mim pessoalmente entregues aos constituintes sensíveis à causa indígena, e contribuíram na reflexão e mobilização que levaram à inclusão dos artigos citados na Constituição. Estes aparentemente simples artigos surtiram importantes efeitos, como a demarcação de muitas terras, por exemplo; também desencadearam o protagonismo dos indígenas. Na época o Ministério da Educação criou o Comité de Educação Escolar Indígena do qual representantes indígenas das várias regiões foram chamados a fazer parte. Foram criados cursos específicos e diferenciados para a formação dos professores indígenas, de modo que a “educação para os índios” foi se transformando em “educação escolar indígena”.

Aos poucos os indígenas foram substituindo os brancos na condução de suas escolas, conseguindo valorizar as línguas maternas e os conhecimentos tradicionais. Infelizmente, com o passar dos anos muitas conquistas das décadas de 80, 90 e 2000 foram sendo esquecidas e/ou abandonadas. É preciso voltar a estudar as leis, a propor novas leis, a elaborar uma política pública federal de qualidade, para que a educação indígena deixe de ser entregue a igrejas, municípios, secretarias estaduais e mesmo, organizações não-governamentais.

Papel da Educação Indígena
Loretta Emiri  – vivendo entre os indígenas da tribo Yawári. (Img. Web)

AC – Toda vez que se fala de educação indígena, há sempre um temor quanto aos riscos de projetos, concebidos e executados por não-indígenas, ao invés de emancipar, reproduzir mecanismos de dominação. Grandes educadores como Paulo Freire defendiam a educação pela práxis, como processo de autonomia e liberdade. Na sua avaliação, qual é o papel que nós, educadores não-indígenas, podemos ter no desenvolvimento dos povos originários?

LE – Paulo Freire não influenciou apenas as atividades educacionais que eu desenvolvi, mas toda a minha vida. O papel dos educadores não-indígenas deve ser limitado à assessoria, no sentido que precisamos compartilhar experiências e conhecimentos com os indígenas, assegurando que eles sejam os protagonistas de suas ações e projetos, os construtores de sua práxis, de sua autonomia.

AC – Comparativamente ao período em que você trabalhou com os Yanomamis e o momento atual, você considera que as condições para o trabalho de formação junto a esses povos hoje são melhores que aquelas do passado?

LE –Hoje em dia as condições para o trabalho de formação dos Ianomami não são melhores que no passado, aliás estão piores, pois a situação conjuntural deste povo tem piorado assustadoramente. A partir da construção da estrada Perimetral Norte, perseguida pelos militares nos anos setenta, sistemáticas e constantes foram as invasões do seu território perpetradas pelas frentes de expansão da sociedade capitalista; até chegar à crise humanitária que estão vivendo nestes dias pois o garimpo, que destrói o floresta, foi incentivado por expoentes do governo Bolsonaro; aliás em Roraima continua sendo incentivado pelo governador, que é um apoiador de Bolsonaro.

AC – Qual é a importância da criação do Ministério dos Povos Indígenas e o fato dele ser comandado por uma mulher, indígena?

LE – Considero o verdadeiro marco histórico a eleição em 2018, para deputada federal, da advogada Joênia Wapichana. Ela foi convidada a se candidatar pelo movimento indígena organizado de Roraima. Foi a primeira deputada indígena; sua eleição encorajou outras mulheres e abriu caminho para as três que foram eleitas em 2022.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas reflete a tomada de consciência, por parte do governo atual, da importância da inclusão dos povos indígenas no âmbito político e administrativo do país; fato que não podia mais ser procrastinado frente ao protagonismo que esses povos alcançaram nas mais variadas áreas do conhecimento, das artes, da defesa de seus direitos.

O Ministério dos Povos Indígenas só poderia ser comandado por uma mulher, pois o protagonismo das mulheres indígenas é uma outra magnifica realidade que foi tomando brilho e força nestes últimos anos. A nomeação da advogada Joênia Wapichana para presidir a FUNAI – Fundação Nacional dos Povos Indígenas –, foi a coroação desse processo.

AC – Você está de malas prontas para uma viagem ao Brasil. Quais são as suas expectativas?

LE – Estou indo para a Amazônia brasileira de mala e cuia, no sentido que decidi voltar a morar em Roraima. Só tenho uma expectativa: continuar repassando, possivelmente até a morte, meus conhecimentos em prol da sobrevivência física e cultural dos povos indígenas brasileiros, especialmente dos Ianomami com os quais (além de décadas de estudos) tive o privilégio de conviver em sua pátria/floresta, por mais de quatro anos.

Da produção da indigenista Loretta Emiri, além do livro “Amazone in tempo reale” (AndreaLivi Editore; 2013) merece atenção especial o capítulo “Yanomami” do livro “A conquista da Escrita – Encontros de educação indígena” (Iluminuras; 1989).

Livro traz capítulos especiais escritos por lideranças indígenas. (Img Web)
Emergências Civilizatórias

Pertinente também registrar o lançamento recente do livro “Emergências sistêmicas: civilizações transitórias em diálogos transculturais”, organizado por Valéria Sanchez e Volmer Silva do Rêgo, publicado pela Editora Anita Garibaldi (2022). O livro reúne trabalhos de 14 autores, dentre os quais:

Daniel Munduruku, líder indígena, filósofo, educador e escritor. – David Popygua Guarany, liderança Guarany, na teku itu, da Terra Indígena Jaraguá. Professor da escola Djekupé Amba Arandu. Participou da Cop23 em Bonn, Alemanha.- Nadia Akawã Tupinambá, educadora e escritora licenciada em Artes e Linguagens pela UNEB.- Cacique Ramon Tupinambá, líder indígena Tupinambá Olivença (BA), educador formado na língua Tupi – licenciatura intercultural (UnebBA).

Arnaldo F. Cardoso, sociólogo e cientista político (PUC-SP), pesquisador, escritor e professor universitário.

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP