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O feitiço da ‘branquitude’!

Ora, seria possível pensar em Brasil sem pensar raça, quando mesmo os livros de História não negam que houve a expropriação de negros e indígenas?

Monique Rodrigues do Prado

São Paulo, 13/06 de 2020.

2 Minutos

As especialidades no tocante a raça parecem ser um tema que desperta cada vez mais curiosidade não só dos acadêmicos, mas da sociedade civil que quer compreender algo que lhe parece ainda estranho, já que comumente, parte-se de um pressuposto que um país que se autodeclara miscigenado, consequentemente não teria problemas raciais.

É o louco que nega a sua esquizofrenia. E aí passamos a decifrar como configura-se a estrutura desse país: somos inegavelmente vizinhos, mas não somos condôminos.   

Assim, esse sistema que amordaça falas e aniquila corpos, exige que a lente seja direcionada para um outro fenômeno: a branquitude.

Pela definição de uma das teóricas contemporâneas em torno da temática no Brasil, usando o cenário paulistano como pano de fundo, Lia Vainer Schucman elucida que “a branquitude é entendida aqui como uma construção sócio-histórica produzida pela ideia falaciosa de superioridade racial branca, e que resulta, nas sociedades estruturadas pelo racismo, em uma posição em que os sujeitos identificados como brancos adquirem privilégios simbólicos e materiais em relação aos não brancos.”

Essa figura não é um sujeito, ou seja, não é o Paulo, não é o Ricardo, não é o Pedro. Essa configuração definida no tempo e no espaço é na verdade a “branquitude”, sistema hegemônico que funda a raiz sócio-político-cultural das instituições de uma sociedade. Ela passa pelos outros corpos distantes do seu retrato como máquina compressora e articula atrocidades para manter-se no controle.

Lembro-me da história compartilhada por Rosane Borges no 1º Encontro Nacional de Magistrados e Magistradas Negros em 2017 que participei em Brasília, no qual a pesquisadora dizia que costumava ter em seu condomínio duas ajudantes de limpeza, uma branca e outra negra.

Eis aí o feitiço da branquitude!

Era comum que quando estivesse no hall perto da mulher branca ouvisse que “o lugar dela não era ali e que ela deveria estudar para ser doutora”. Uma vez, por curiosidade, a pesquisadora perguntou à moça negra se também ouvia tal comentário e a resposta não poderia ser diferente: “a única coisa que ouço são convites para subir no apartamento desses senhores brancos, depois que suas esposas já estão fora de casa.”

Esse lugar da pretensão de controle sobre corpos racializados, a fim de domesticá-los, possuí-los e violentá-los é típico aspecto da manifestação da branquitude. Por certo, nem sempre de forma tão indigesta como o comentário da ajudante de limpeza supra descrito, mas o racismo vai encontrando maneiras de violentar as subjetividades negras sem culpa.

A representação do branco é desenhada na história como algo pronto e acabado em si mesmo. Ele é o delimitador do establishment, quem cerca ou amplia onde a gente pode pisar. É invencível. Nada para o imaginário dessa virilidade inflamada e hegemônica. Ele é a regra, o resto é um braço e por aí a gente padece à margem de sua existência.

Grada Kilomba, psicanalista e ativista, em sua exposição na Pinacoteca de São Paulo abordou o tema sob a perspectiva do mito de Narciso que, enfeitiçado a sua imagem, perpetua-se na sua figura branca de tal maneira que não vê mais nada, a não ser a si mesmo como a idealização de uma representação social homogênica que em nada corresponde com a realidade.

A autora traz a mitologia grega aplicada às concepções freudianas para explicar como esse feitiço anestésico da branquitude ocidental tende a reverberar negativamente nos países que foram colonizados. É ele quem alveja, aniquila e autoriza quem é sujeito. Essa estrutura é o sistema que engole tudo que não se reforma para parecer com ele. É o eco, um reflexo que se deita abraçado e seduzido pela miragem de si.

Questões da representatividade e preconceitos

Percebe-se que a branquitude eclodiu em um grande sistema que necessariamente precisa estar imbuído de sua personalidade, de suas crenças, de seus cultos, de seus modos, etc. Por aí caminham os discursos que validaram o processo de colonização como o “grande processo civilizatório”, rechaçando qualquer origem de quem pisou nesse continente com raízes negras ou mesmo de quem aqui já habitava, como no caso dos indígenas. E pelo mesmo caminho vai a demonização dos cultos de matriz africana, já que a evangelização obrigatoriamente não permite nada que seja essencialmente preto.

A branquitude goza de um status que resulta em acesso a bens materiais e simbólicos, como o trânsito em espaços públicos e privados mesmo quando não pertence a uma classe social mais abastada. É o típico exemplo dos espaços de poder que sentem-se incomodados com uma presença negra ou indígena, como em um comercial de perfume onde toda a família é enegrecida, ou em uma universidade pública, em que a professora tem nível de doutorado, ou no Congresso onde figuras como Talíria Petrone e Joenia Wapichana causam arrepio a estrutura da branquitude.

Não dá para reduzir o fenômeno a perspectiva dual, simplista e empobrecida, em que de um lado há bonzinhos e de outro lado demônios. Entretanto, a compreensão da branquitude demarca um simbolismo importante para digerir a origem de privilégios.

Certamente a quebra desse feitiço me leva a fazer a seguinte provocação: “Como seria possível Narciso desapaixonar-se por si mesmo e escutar a Eco?” Primeiro reconhecendo que estava enfeitiçado e, portanto, cego por sua miragem e, segundo, ouvindo que eco repercutia exatamente o que ele dizia.

Para a branquitude fica a tarefa de reconhecer o fenômeno observando que a ideia de “sorte” ou puramente “merecimento” durante toda uma vida, com garantia de acessos de algumas pessoas e fronteiras de exclusão para outras na verdade, tem relação direta com a estrutura vigente, exigindo necessariamente a legítima revisão de papéis.


Monique Rodrigues do Prado – Advogada. Integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco.
Integrante do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e da Educafro.

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Redação

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