ConteúdosRecentesSociedade

A Time in America

Sergio Leone dirigiu e lançou em 1984 um filme épico que nos remete ao Fausto de Göethe. Atores como Robert De Niro (Noodles) James Woods (Max), Elisabeth McGovern, Jennifer Connelly, Joe Pesci, Treat Williams, William Forsythe o fizeram um clássico do cinema.

Eusiel Rego

Toronto – CA. – 13/06/2022

3 Minutos

O texto foi originalmente publicado em geocities.com/Vienna/opera/3286/pag_artigos.html como sendo uma contribuição ao entendimento deste filme Once Upon a Time in America.

Parte 1 – Em uma das cenas nucleares e mais emotivas de ‘Era una Vez na América’, Noodles (Robert De Niro) e o gordo Moe (Larry Rapp) se reencontram depois de mais de trinta anos, e à pergunta de Moe: “Que fez todo este tempo?” Noodles responde: “Tenho dormido cedo”. À luz do relato da infância e juventude dos dois (já anciãos) que mais adiante nos será revelado, poucas vezes uma referência como esta saiu com tanta verdade do coração deste personagem.

Com efeito, a resposta de Noodles anuncia um homem que não só perdeu sua época de juventude, mas que seu presente é um continuo reviver do passado, lembranças que ressoam na mente de Noodles como o interminável e atormentador ruído de um telefone e que ao final, serão tão obsessivos para o espectador como são para ele.

Esta forma de fascinação e de conexão com a mente de um personagem, o diretor Sérgio Leone consegue de uma maneira exemplar em seu filme, graças a uma complexa estrutura narrativa, que aproveita para relacionar e justapor três tempos diferentes, simultaneamente a uma poderosa criatividade poética que dão lugar a uma visão épica da América.

É essa estrutura narrativa que nos surpreende ao fim do filme. A forma com que Leone mescla três níveis temporais (infância, juventude e velhice) de maneira que nunca possamos estar muito seguros de qual dos três é o tempo presente, mesmo que a lógica indique que seria o tempo mais recente, a velhice. O plano final deixa claro que para Noodles o tempo presente é a sua juventude. Este é o olhar de Noodles.

Leone consegue tal entrelaçamento, justaposição, usando uma série de transições poéticas entre estes três tempos, com o objetivo de relacioná-los dramaticamente e sugerir continuidade interna da história. Momentos de sentimentos paralelos, solapados, estas transições vão desde “elipses” puramente visuais: um Noodles velho, que observa através do buraco na parede seu passado, sua amada e a si mesmo.

A Time in America
        De Niro e Leone – 1984 (Img. Internet)

Olhando através daquele mesmo buraco, cinquenta anos mais jovem (quiçá esta seja a cena mais poderosa e reveladora de todo o filme, pelo grau poético que consegue, unindo-se à música em crescendo de Ennio Morricone e à obsessiva melodia do tema Amapola).

Também, a cena de Noodles, jovem, na estação, contemplando a fachada de entrada a Coney Island, para dar um passo ao passado, até a imagem do seu rosto já velho, no mesmo espelho (ao som de Yesterday de Lennon-McCartney).

Lembremos aqui o épico Fausto de Göethe: “Ah! Os anos de minha juventude! Que encontra em suas memórias antagônicas o vazio da queda metafísica.”

Esta difícil, mas surpreendente estrutura, será utilizada não mais para contar a perfeição de uma história, algo que é secundário para o diretor italiano, mas para fazer com que o espectador participe de tal percepção e sensibilidade. Este filme que originariamente foi concebido como uma superprodução (ficando relegado até hoje, 2022, ao espaço das obras de arte) possui esse status de raridade: talvez, o primeiro e provavelmente único filme verdadeiramente épico.

Os Espelhos – parte 2 – O tolo no espelho

“Um objeto, ente ou forma que possui simetria de reflexão, tem um plano imaginário que o divide em duas partes idênticas” (G. Rhode, Simetria).

Vencedores e Vencidos: o desmascaramento ou o desvelar do ser como algo natural e não apenas como justiça poética.

É de grande importância poética o papel que têm a simetria e os espelhos. O primeiro espelho é aquele no qual Noodles vê refletido seu rosto já idoso ao som de Yesterday (do qual Morricone elimina a letra excetuando a primeira palavra: Yesterday). Em um primeiro momento o espectador pode interpretar o olhar de Noodles como nostalgia de uma juventude perdida, algo com o qual contribui a interpretação de Yesterday.

Mas, também somos levados a interpretar seu olhar como uma recordação das palavras que a pequena Deborah –  (nome semita que quer dizer abelha, aquela que é abnegada e que trabalha, uma profetisa bíblica) na adolescência interpretada por Jennifer Connelly – lhe diz há cinquenta anos atrás: ‘(..) Olhe-se no espelho, Noodles!’, obrigando-o cruelmente a enfrentar-se com sua realidade, golpeando-o com sua superioridade, como beleza inatingível e como uma pessoa que quer ‘chegar ao topo’.

O olhar deste Noodles adolescente, diante do segundo espelho é o mesmo olhar do Noodles já velho. O olhar do jovem Noodles é premonitório deste outro olhar, mas carregado com todas as esperanças típicas da juventude. Noodles que quer dizer tolo, ingênuo, equivaleria aqui ao sonho de Fausto, que quer dizer jovem.

Por último, o terceiro espelho: o último encontro entre Noodles e Deborah através do qual terminam o diálogo iniciado no segundo espelho. Após tê-la violentado (estuprado) trinta anos antes, Noodles entra no camarim de Deborah, agora uma grande estrela, sentada frente a um grande espelho. Noodles permanece em pé, seus olhares refletidos no espelho. Ela com sua beleza ainda patente, e ele bem velho e cansado.

Para entender o personagem Noodles, e em especial sua relação com Deborah e os sentimentos que o levam a violentá-la, temos que ter em mente estas três sequências reflexivas, que nos dão a conhecer a pesada carga que supõe a própria imagem de Noodles, e também a imagem física que a pequena Deborah lhe ensinou a odiar, uma carga da qual Noodles está livre em sua relação com Eve, personagem símbolo de inocência, dotada de uma beleza material e alcançável.

A Time in America
Jennifer Connelly – é a jovem Débora no filme (Img. Web)

Ao contrário, a beleza de Deborah que se apresenta como uma beleza etérea e inatingível (mas também como um disfarce em decadência, como se revela em seu último encontro com Noodles: Deborah está interpretando o papel de Cleópatra (vaidade) de Shakespare, que ajuda o espectador (e a Noodles) a pensar nela como um ser pétreo, de beleza inamovível, quase como uma deidade.

Em todos e em cada um de seus encontros, esta beleza de Deborah torna Noodles ainda mais consciente da imagem de si mesmo, que desde criança Deborah havia menosprezado.

Noodles sempre carregará a crença de sua inferioridade física e moral (um gangster delinquente judeu que recebe lições morais vindas de Deborah): a leitura dos Cantares de Salomão é ao mesmo tempo uma lição moral e uma declaração de amor diante de Deborah.

Neste último encontro, o espelho do camarim de Deborah (Elizabeth McGovern) também a obriga a enfrentar-se a si mesma. Sua beleza aparentemente atemporal está coberta por uma máscara de maquiagem que aos poucos vai sendo retirada, desnudando um rosto ainda belo, porém marcado pela idade e também pela dor. Pela primeira vez em todo o filme, Deborah é sincera.

Retira a máscara de aparente perfeição para revelar um ser tão vulnerável como Noodles. Este giro sutil implica que os vencedores se descobrem como vencidos, da mesma forma ocorre no final, com Max (James Woods). Este desmascaramento, esse desvelar dos vencedores não tem uma característica de triunfo para Noodles, nem implica a defesa de virtudes do protagonista (antes de mais nada, Noodles é um ladrão, um assassino e um violador) exceto quiçá a virtude, a honra e o amor que ainda sente por Deborah e por Max.

 

 

Compartilhar

Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP