Notícias

EDGAR MORIN – Entrevista via Skype para El País

Foto: Ana Branco / Agência O Globo

 A entrevista original em espanhol por: Nuccio Ordine,

publicada por El País, 11-04-2020.

“A unificação técnico-econômica do mundo, que trouxe o capitalismo agressivo nos anos 1990, gerou um enorme paradoxo que o surgimento do coronavírus agora tornou visível a todos: essa interdependência entre países, em vez de favorecer o progresso real da consciência e da compreensão dos povos, desencadeou formas de egoísmo e ultranacionalismo.

O vírus desmascarou essa ausência de uma autêntica consciência planetária da humanidade”. Edgar Morin fala com sua habitual paixão pelo Skype. Ele, como milhões de europeus, encontra-se confinado em sua casa no sul da França, em Montpellier, com sua esposa.

Considerado um dos filósofos contemporâneos mais brilhantes, aos 98 anos (em 8 de julho completará 99 anos), Morin lê, escreve, ouve música e mantém contato com amigos e parentes. Sua vontade de viver demonstra fortemente o drama de um flagelo que está aniquilando milhares de idosos e doentes com patologias anteriores. “Sei muito bem”, diz com tom irônico, que poderia ser a vítima por excelência do coronavírus. Na minha idade, no entanto, a morte está sempre à espreita. Portanto, é melhor pensar na vida e refletir sobre o que está acontecendo”.

Hoje, é necessário incentivar a cooperação entre países com o objetivo principal de fazer crescer os sentimentos de solidariedade e fraternidade entre os povos .

A globalização da qual fala criou um grande mercado global que, através da tecnologia mais avançada, reduziu consideravelmente as distâncias entre os continentes. Mas essa redução de distâncias não favoreceu o diálogo entre os povos. Pelo contrário, fomentou o relançamento do fechamento identitário em si mesmo, alimentando um perigoso soberanismo.

Vivemos em um grande mercado planetário que não soube suscitar sentimentos de fraternidade entre os países. Criou, de fato, um medo generalizado do futuro. E a pandemia de coronavírus iluminou essa contradição, tornando-a ainda mais evidente. Isso me faz pensar na grande crise econômica dos anos 1930, na qual vários países europeus, Alemanha e Itália, sobretudo, abraçaram o ultranacionalismo. E mesmo que falte a vontade hegemônica dos nazistas, hoje me parece indiscutível esse fechamento em si mesmos.

O desenvolvimento econômico-capitalista, então, desencadeou os grandes problemas que afetam nosso planeta: a deterioração da biosfera, a crise geral da democracia, o aumento das desigualdades e as injustiças, a proliferação de armamentos, os novos autoritarismos demagógicos (com os Estados Unidos e o Brasil na cabeça). Por isso, hoje, é necessário promover a construção de uma consciência planetária sob sua base humanitária: incentivar a cooperação entre países com o objetivo principal de fazer crescer os sentimentos de solidariedade e fraternidade entre os povos.

Tentemos analisar essa contradição em escala reduzida, levando em consideração o microcosmo das relações pessoais. A incursão do vírus colocou em crise a ideologia de fundo que dominou as campanhas eleitorais nos últimos anos: slogans como “America First”, “La France d’abord”, “Prima gli italiani”, “Brasil acima de tudo”, ofereceram uma imagem insular da humanidade, na qual cada indivíduo parece ser uma ilha separada das outras (usando a bela metáfora de uma meditação de John Donne).

Ao contrário, a pandemia mostrou que a humanidade é um único continente e que os seres humanos estão profundamente ligados uns aos outros. Nunca como neste momento de isolamento (longe dos afetos, dos amigos, da vida comunitária) tomamos consciência da necessidade do outro. “Eu fico em casa” significa não apenas proteger a nós mesmos, mas também as outras pessoas com quem formamos nossa comunidade.

Sim. O surgimento do vírus e as medidas que nos obrigam a ficar em casa acabaram estimulando nosso sentimento de fraternidade. Na França, por exemplo, todas as noites temos um compromisso em nossas janelas para aplaudir nossos médicos e os profissionais de saúde que, na linha de frente, prestam assistência aos doentes. Me emocionou, na semana passada, quando eu vi na televisão, em Nápoles e em outras cidades italianas, as pessoas se juntando nas sacadas para cantar juntas o hino nacional e para dançar ao ritmo de canções populares.

Todas as crises graves podem aumentar os fenômenos de fechamento e angústia: a caça ao infrator e a necessidade de um bode expiatório, muitas vezes, identificado com o estrangeiro ou o migrante.

Mas há também o outro lado da moeda. A experiência nos ensina que todas as crises graves podem aumentar os fenômenos de fechamento e angústia: a caça ao infrator e a necessidade de um bode expiatório, muitas vezes, identificado com o estrangeiro ou o migrante. As crises podem favorecer a imaginação criativa (como aconteceu com o New Deal) ou provocar regressão.

Refere-se também à Europa que, diante da emergência de saúde, revelou mais uma vez sua incapacidade de planejar estratégias comuns e solidárias?

 É claro. A pseudo Europa dos banqueiros e dos tecnocratas massacrou, nessas décadas, os autênticos ideais europeus, cancelando todo impulso para a construção de uma consciência unitária. Cada país está administrando a pandemia de forma independente, sem uma verdadeira coordenação. Esperemos que desta crise possa ressurgir um espírito comunitário capaz de superar os erros do passado: da gestão da emergência dos migrantes ao predomínio das razões financeiras sobre as humanas, da ausência de uma política internacional europeia à incapacidade de legislar em matéria tributária.

Qual foi a sua reação diante do primeiro discurso de Boris Johnson, ao impiedoso cinismo com o qual convidou os cidadãos britânicos a se prepararem para as milhares de mortes que o coronavírus provocaria e a aceitar os princípios do darwinismo social (a supressão dos mais fracos)?

 Um exemplo claro de como a razão econômica é mais importante e mais forte que a humanitária. O lucro vale muito mais do que as enormes perdas de seres humanos que a epidemia pode infligir. Afinal, o sacrifício dos mais frágeis (dos idosos e dos doentes) é funcional para uma lógica da seleção natural. Como ocorre no mundo do mercado, aqueles que não suportam a concorrência estão destinados a sucumbir. Criar uma sociedade autenticamente humana significa opor-se a todo custo a esse darwinismo social.

O Presidente Macron usou a metáfora da guerra para falar da pandemia. Quais são as afinidades e as diferenças entre um verdadeiro conflito armado e o que estamos vivendo?

 Eu, que vivi a guerra, conheço bem os mecanismos. Primeiro, me parece evidente uma diversidade. Na guerra, as medidas de confinamento e toque de recolher são impostas pelo inimigo, agora, ao contrário, é o Estado que o impõe contra o inimigo. A segunda reflexão tem a ver com a natureza do adversário. Em uma guerra é visível, agora é invisível.

Também para aqueles que, como eu, participaram da resistência, a analogia poderia funcionar da mesma maneira: para os partisanos, a Gestapo era como um vírus, porque se infiltrava em qualquer lugar, porque tudo que estava ao nosso redor poderia ter ouvido para informar e denunciar.

Agora, não sei se esse período de confinamento durará o suficiente para provocar restrições que possam lembrar o racionamento de alimentos e os comércios ocultos do mercado negro. Penso, e espero que não. De qualquer forma, não creio que utilizar a metáfora da guerra possa ser mais útil para compreender essa resistência à epidemia.

Sobre o tema da solidariedade humana: não lhe parece que os cientistas neste momento estão promovendo uma colaboração internacional para buscar a derrota do vírus? A chegada de médicos chineses e cubanos no norte da Itália não é um sinal de esperança?

Isso é indiscutivelmente positivo. A rede planetária de pesquisadores atesta um esforço para um bem comum universal que atravessa fronteiras nacionais, idiomas e cores da pele. Mas não se deve subestimar os fenômenos de coesão nacional: estar, recordava antes, ao redor dos profissionais de saúde que trabalham nos hospitais. Muitos, no entanto, são deixados de fora dessas novas formas de agregação solidária: pessoas solitárias, idosos e famílias pobres não conectadas à Internet, sem contar os que vivem na rua porque não têm casa. Se esse regime durar por um período longo, como continuaríamos cultivando as relações humanas e como conseguiríamos tolerar as privações? 

 A ciência pode iniciar um diálogo entre trabalhadores de diferentes países que neste momento trabalham para criar uma vacina e produzir fármacos eficazes.

Gostaria que abordássemos outra vez o assunto da ciência. Depois do desastre da Segunda Guerra Mundial, as primeiras relações entre Israel e Alemanha ocorreram por meio dos cientistas. No ano passado, enquanto visitava o Cern de Genebra com Fabiola Gianotti, vi em torno de uma mesa pesquisadores que vieram de países em conflito entre si. Não acha que a pesquisa científica básica, que não espera ganhar nada, possa contribuir para promover nesta emergência da pandemia um espírito de fraternidade universal?

Claro que sim. A ciência pode desempenhar um papel importante, mas não decisivo. Pode iniciar um diálogo entre trabalhadores de diferentes países que neste momento trabalham para criar uma vacina e produzir fármacos eficazes. Mas não se deve esquecer que a ciência é sempre ambivalente. No passado, muitos pesquisadores trabalharam a serviço do poder e da guerra. Dito isto, tenho grande confiança nos cientistas criativos e imaginativos que certamente saberão promover e defender uma pesquisa científica sólida e a serviço da humanidade.

Entre as emergências que a epidemia evidenciou está sobretudo a sanitária. Em alguns países europeus, os Governos enfraqueceram progressivamente os hospitais com substanciais cortes nos recursos. A escassez de médicos, enfermeiros, leitos e equipamentos mostrou uma saúde pública enferma.

Não há dúvida de que a saúde tenha que ser pública e universal. Na Europa, nas últimas décadas, fomos vítimas das diretrizes neoliberais que insistiram na redução dos serviços públicos em geral. Planejar a administração de hospitais como se fossem empresas significa conceber os pacientes como mercadorias incluídas em um ciclo produtivo. Este é outro exemplo de como uma visão puramente financeira pode produzir desastres do ponto de vista humano e sanitário.

Compartilhar

Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP