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Covid-19: Mudando o que?

O “confisco” pelo governo americano de máscaras da 3M (maior fabricante do mundo da máscara N95, produzidas na China), no início de abril, usando a Lei da Produção para Defesa (Defense Production Act) legitima-se no patriotismo e desmascara o salve-se quem puder, evidenciando que países mais ricos têm mais condições de pagar, à vista, insumos sanitários na emergência global Covid-19. Afinal Covid-19: Mudando o que?

Jacqueline Quaresemin

São Paulo, 17/04 de 2020.

3 Minutos

Tal pirataria de Estado coloca em xeque as bases do próprio modelo econômico, e demonstra o quanto ainda é necessária a presença do Estado na garantia da proteção social, com políticas de transferência de renda aos segmentos mais vulneráveis e crédito para empresas manterem seus funcionários.

A China, que detém a maior parte da produção mundial de máscaras faciais sanitárias, também bloqueou a exportação no país no auge da Covid-19 em meados de janeiro, sinalizando que haveria pane global na cadeia de suprimentos. Empresas locais se adaptaram rapidamente.

É o caso da BYD, uma das maiores fabricantes de carros elétricos chinesas, que em uma semana transformou seu parque industrial para produzir 5 milhões de máscara por dia. Hoje, em várias partes do mundo empresas de diferentes segmentos (Ford e GE produzindo ventiladores pulmonares) tentam rapidamente se adaptar, tanto por oportunidade de mercado quanto pela questão humanitária. Mas, cabe perguntar: onde serão descartadas tantas máscaras, luvas e outros equipamentos usados na emergência da Covid-19?

Enquanto a disputa (US e China) no “topo da cadeia alimentar” aumenta, à Itália que no Renascimento glorificou o homem (antropocentrismo) no esplendor das artes, ciência, filosofia, literatura, contra a escuridão teocentrista medieval, marcando o início da Modernidade, agonizava (é o segundo país no ranking com o maior número de mortos) antes que aparecesse ajuda da própria Comunidade Europeia ou de outros países ricos.

Covid-19: Mudando o que? Mascaras, álcool 70º, distanciamento social...até a chegada da vacina para todos. (Img : Internet).
Covid-19: Mudando o que? Mascaras, álcool 70º, distanciamento social…até a chegada da vacina para todos. (Img : Internet)

Essa guerra das máscaras traduz a urgência de um reequilíbrio para o mundo continuar respirando. Rever o modelo econômico vigente, que perpetua a desigualdade social e consequente concentração de renda, é estratégico em um mundo hiperconectado, onde ‘zilhões’ de dados gerando ‘zilhões’ de outros em diversos formatos de conteúdo são compartilhados em redes digitais, mudando o valor das coisas, criando um novo valor para o dinheiro, etc. Afinal, estará a Covid-19: Mudando o que?

 A Inevitável Covid-19

Não há como prever surtos virais, mas, também não há como continuar sem discutir em que mundo queremos viver e deixar para gerações futuras. Sem isto, permanecerá a descrença pós pandemia. Conhecidos desde os anos 60 os vírus do tipo coronaviridae há muito infectam pessoas com doenças respiratórias comuns. A pergunta é por que estão ficando cada vez resistentes?

Em uma reemergência de tal doença podemos não ter a mesma chance como neste “terceiro ataque das coronas” em menos de 2 décadas. O primeiro em 2002 a 2003 com a SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome) provocando 774 mortes; o segundo em 2012 e 2015 como MERS[i] (Middle East Respiratory Syndrome) matou 858 pessoas; e o terceiro, como SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) que matou no mundo,  148.634 pessoas e contaminou 2.205.976, segundo Worldmeter, em 17 de abril de 2020, às 10:10h.

A história dos “Coronas”, do latim coroa, bem poderia ser contada às crianças como uma disputa entre os reinos onde alguém descumpriu o acordo de convivência. Agora os Coronas reivindicam “o trono”, ou, pelo menos, querem disputá-lo já que nunca não foram “ouvidos”.

Escatologias a parte, há muito o homem se colocou fora e acima da biodiversidade. Explorou tudo, analisou e categorizou à natureza como algo diverso de si. Em questões ambientais mais amplas houve alguns alertas, onde destacam-se:

§  1972 – Clube de Roma publicou “The Limits of Growth” (Os limites do Crescimento) alertando para problemas cruciais como energia, saneamento, poluição, saúde, ambiente, crescimento populacional, e a necessidade de um limite no desenvolvimento econômico.

No mesmo ano a Conferência da ONU em Estocolmo sugeriu o “ecodesenvolvimento” como novo modelo para conciliar desenvolvimento econômico em perspectiva mais ecológica, e fortalecimento da consciência para os problemas ambientais;

§  1992 – Cúpula da Terra ou Rio92, depois Rio+20 em 2012, “com poucos avanços em relação à Rio-92, exceto o de manter o desenvolvimento sustentável como um desafio na agenda de preocupações da sociedade, mas com uma decisiva postura de afastamento entre discursos e compromissos concretos por parte dos governos. (p.277)

§  2015 – Acordo de Paris tinha o objetivo de reduzir emissões de gases de efeito estufa para mitigar as mudanças climáticas. E ainda naquele ano, em Nova York, se definiu as diretrizes da Agenda 2030 da ONU. Um plano de ação buscando reduzir as desigualdades, melhorar às condições de vida do planeta e garantir à paz. 

E quando teremos a vacina, afinal, para todos? Covid-19: Mudando o que?
E quando teremos a vacina, afinal, para todos? Covid-19: Mudando o que? (Foto: Internet)

Em 2020 os países signatários da Agenda devem apresentar resultados sobre as 169 Metas, certamente, agora redimensionadas para um calendário que não previu a pandemia.

A percepção sobre questão ambiental e os impactos de mudanças climáticas, tema transversal aos outros da Agenda 2030, deve ser melhor investigada. Não há nem consenso sobre mudança climática, quanto mais sobre impactos.

Guerras de narrativas à parte, é inegável a supremacia do ser humano sobre à natureza, desrespeitando, por exemplo, os companheiros de jornada, traduzido na lista vermelha das espécies em extinção.

E como se não houvesse conexão, vários artigos científicos recentes sobre a pandemia consideram enigmática a rapidez com que se propagou o vírus SarsCoV-2. Ou seja, como um vírus ultrapassou os limites das espécies para infectar humanos num tempo tão curto, além do risco de reemergência em caso de pré-adaptação em outra espécie.

Ecossistemas e fluxos informativos

Há que se rever os modelos, paradigmas. A complexidade das transformações em curso no mundo, impulsionadas por tecnologias digitais que tudo conecta, tudo comunica e tudo quer ser ouvido, mostra a velocidade com que arquiteturas informativas estão abrindo possibilidades para uma nova ecologia, que conforme Massimo Di Felice, Coordenador do grupo Atopos, deve superar a visão ocidental antropocêntrica e sistêmica, e começar a pensar a natureza e o mundo articulados em uma comunicação a partir dos fluxos informativos em redes de redes.

Essa dimensão de uma comunicação conectiva, não apenas acessa infinidade de dados e conteúdos em ambiente interativo, mas cria um habitat que estimula interações e dinâmicas capazes de alterar a condição das entidades e substâncias que nele se conectam.

Tais ecologias comunicativas que aparecem sob forma de redes ecológicas digitais manifestam-nos nova forma comunicativa, que nos obriga a produzir outra ideia de comunicação, não mais redutível apenas aos mídia, aos conteúdos vinculados ou a seus significados sociais e políticos, mas que compreenda ampla gama de interações que, estendendo-se além das dimensões do social antropomórfico e das dimensões urbanas e societária, inclua a biosfera e as formas de conexão que se desenvolvem em seu interior, nas suas diversas dimensões: geológicas, vegetais, orgânicas, técnicas, espirituais, etc.[ii]

 A inteligência artificial está permitindo reunir cientistas e pesquisadores do mundo na identificação de padrões de comportamento do SarsCoV-2, que possam acelerar o processo de produção da uma vacina. Estas costumam demorar entre 10 e 15 anos entre estudos clínicos, compreensão do vírus, testes e registros em agências reguladoras até a solução final.

Tais prazos estão sendo revistos. A mesma equipe da Universidade de Flinders/Austrália, que desenvolveu por inteligência artificial em 2019 a primeira vacina contra a gripe a partir do algoritmoSAM[iii] (Algoritmos Inteligentes para Descobertas Médicas), recentemente desenvolveu a vacina para Covid-19 também por inteligência artificial e computação na nuvem para acelerar o design de vacinas que por métodos tradicionais levaria anos para o desenvolvimento.

Pesquisas em saúde, equipe médica mais preparada para emergências e saúde pública forte serão estratégicas nos próximos 5 anos. Os avanços das tecnologias digitais podem contribuir na luta onde surtos virais parecem estar diminuindo o tempo de manifestação.

Só vacinas dão resultados efetivos em combates de infecção em massa. Caso a Covid-19 não seja descontinuada aumentarão muito as disputas por insumos sanitários, principalmente máscaras, luvas e respiradores.  O planeta e todas as espécies já estavam sufocados.

A poluição do ar é uma crise de saúde que mata mais de 4 milhões de pessoas por ano. O que deve ser revisto é o modelo de desenvolvimento. Pouco valerão os esforços, as vidas que se foram, e mesmo a luta pelas “sagradas máscaras” se não refletirmos sobre o mundo que queremos viver daqui para frente.

Biodiversidade e Inovação

A onda dos “Coronas” pode ser longa ou curta dependendo da sazonalidade do vírus até o surgimento de vacinas. E como se posicionará o Brasil nessa disputa por insumos sanitários? A mercê de grandes fabricantes, hora aliados outra adversários conforme os ventos da geopolítica internacional? Ou inovará a partir do uso sustentável da maior biodiversidade do planeta?

O Brasil pode desenvolver tecnologias sustentáveis para produção de insumos a partir de fibras naturais, produzindo tecidos biodegradáveis, antibacterianos ou menos poluentes. Já existem muitas iniciativas neste sentido. Aumentar às verbas para pesquisas em Universidades e Institutos é estratégico na retomada do desenvolvimento econômico com menor impacto ambiental.

As empresas também devem ser incentivadas a investir em suas áreas de P&D, abrindo novas linhas de produtos que utilizem recursos locais gerando renda e ocupação de forma sustentável em âmbito de territórios, além de garantir identidade com a origem de tais recursos.

Sagradas Máscaras

As máscaras, que já foram mais sagradas, ao longo da história ocuparam o imaginário social representando divindades, antepassados, celebrações religiosas. Usadas também para o lúdico, o artístico, assumiram outras identidades. É o caso das sanitárias que cresceram com as doenças decorrentes da precariedade do saneamento nas cidades a partir do séc. XIX. E mesmo as máscaras sendo o item mais consumido no momento elas não permitirão “esconder seu o rosto para que o mundo jamais te encontre“.

A inteligência artificial digitalizou o rosto humano para identificar pessoas, garantir que máscaras não sejam usadas em transações financeiras online, monitorar movimentos net-ativistas onde mascarados queiram contestar políticas e economias anonimamente. São muitas as aplicações já incorporadas ao cotidiano, sem que as pessoas tenham percebido.

Essa mesma tecnologia deverá ampliar os mecanismos de controle e vigilância sobre ações do Estado, principalmente, na gestão dos recursos, políticas sociais, entre outras, buscando maior transparência dos governantes e consequente participação social.

E neste mutatis mutandis do início do séc. XIX, tudo acontecendo numa velocidade que não conseguimos digitar o que pensamos, assistir disputas por máscaras e insumos copiando as práticas dos Corsários de Piratas, que assaltavam embarcações de outras nações no séc. XV a XVIII (período mercantilista), se apropriando de preciosas  mercadorias, muitas roubadas do “novo mundo”,  mostram o quanto estamos atrasados.

Continuamos reproduzindo/copiando práticas de aproximadamente 600 anos atrás. Nesta “onda” vamos perder as batalhas para os vírus. São mais eficientes em copiar e se perpetuar. Estão aqui há milhões de anos, mesmo antes que o Homo se achasse Sapiens.

O tempo é de Inovação e práticas de pilhagem, exclusão e sabotagem, entre outras, não caberão mais em um mundo hiperconectado, que exige transparência na informação, uso  e acesso aos dados (open government), aos bens da vida, à tecnologia em banda larga veloz, estável e acessível (R$) para que o maior número de pessoas possam apreender, trocar saberes, participar, produzir, opinar e compartilhar.

Jacqueline Quaresemin de Oliveira – Historiadora e Mestre em Sociologia/UFRGS.
Especialista em Opinião Pública, atuando há 25 anos em pesquisas de mercado, opinião e projetos sociais.
Professora na Pós-Graduação FESPSP.

[i] 2012 Oriente Médio e 2015 Coréia do Sul

[ii] Di Felice, Massimo (2017). Net-Ativismo: da ação social para o ato conectivo. 1ª ed. São Paulo: Paulus Editora, p.237-238

[iii] Analisou trilhões de drogas, classificando entre “boas” e “ruins”, selecionou 50 melhores para produção da vacina, que já está sendo testada pelo período de 12 meses em clínicas americanas. Mas, os próprios pesquisadores reconhecem que tal processo ainda não substitui vacinas tradicionais, apenas auxilia na sua eficácia.

Outras fontes:

H. W. Janson. História da Arte, 7ª ed. São Paulo: DIFEL, 2007.

Revista Exame, in: https://exame.abril.com.br/negocios/fabricantes-de-mascaras-lucram-com-coronavirus/

BBC, in: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52166245

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

One thought on “Covid-19: Mudando o que?

  • Excelente artigo da Prof. Jacqueline de Oliveira. Um apanhado de dados habilmente transformados em informações úteis para a sociedade nesse momento de reflexão mais ampla, momento que todos nós deveríamos valorizar. Considero o ponto mais importante do texto a menção que necessitamos ter um novo modelo de desenvolvimento. Não concordo com a autora em relação à forma intervencionista do Estado (distributiva e remediadora) e tampouco aprecio o ecocentrismo que permeia boa parte de sua ideia, ainda que eu concorde com um Estado regulador e controlador dos abusos do capital e igualmente defenda a preservação do meio ambiente como única maneria de garantir a sustentabilidade da biosfera.

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