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Paus – Bandeiras – Celulares

Se num primeiro momento, a identificação dos indivíduos atende ao imperativo legal de responsabilização, julgamento e punição por seus atos criminosos, a tarefa não se encerra aí.

Arnaldo Francisco Cardoso

São Paulo, 14/01/2023.

5 Minutos

Desde o assalto às sedes dos Três Poderes da República em Brasília, no último 8 de janeiro, por uma turba irascível de indivíduos empunhando pedaços de pau, bandeiras e celulares, a avalanche de imagens bizarras chocou a maior parte da opinião pública nacional e internacional e repôs, com sentido de urgência, a necessidade de compreensão de quem são esses indivíduos e que caminhos percorreram para se tornarem o que hoje são.

Terroristas? Fascistas? Extremistas de direita? Fanáticos? Lobotomizados? Perdedores? Perversos? Ressentidos? Ignorantes? Idiotas úteis? Ou constataremos como Hannah Arendt, ao assistir ao julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, que um grande mal pode ser produzido por “um funcionário medíocre, um arrivista incapaz de refletir sobre seus atos”? Foi dessa chocante experiência que a filósofa judia criou o conceito de “banalidade do mal”. Vale lembrar que, ao final do julgamento, Eichmann foi sentenciado culpado e enforcado.

Se num primeiro momento, a identificação dos autores do atentado em Brasília atende ao imperativo legal de responsabilização, julgamento e punição por seus atos criminosos, a tarefa não se encerra aí.

Impõe-se para a sociedade nacional e para todo o mundo civilizado, uma análise sistêmica, contextualizada, desse acontecimento e outros similares que ameaçam escalar, como a invasão do Capitólio americano dois anos atrás. A tarefa, de grande complexidade, exige inclusive uma disposição para a autocrítica, pois há um fracasso a ser assumido coletivamente.

Civilização versus Barbárie?

Uma reflexão sobre o assalto a Brasília inserindo-o num quadro histórico e conceitual amplo, torna pertinente uma retomada de noções elaboradas por Sigmund Freud (1856-1939) como em seu livro “Totem e Tabu” (1921) onde desenvolveu uma investigação sobre os primórdios da civilização, reelaborando o mito da horda primeva e da morte do pai totêmico, fomentando hipóteses da origem das instituições culturais e sociais. Entre totens e tabus as liberdades individuais e coletivas se arranjam dando forma à cada sociedade.

Desse livro é importante reter, para a nossa reflexão, a formulação feita pelo autor a respeito da trajetória dos homens, da natureza em direção à cultura, na qual se daria a transformação da vida psíquica do indivíduo configurando inclusive suas relações interpessoais. É válido também reter, desta obra, a noção de que nesse processo ocorre a reconfiguração dos lugares da autoridade.

Mas o livro de Freud que mais parece contribuir para a reflexão em pauta é “O mal-estar na civilização” (1930), dada a formulação de uma crítica da civilização, sintetizada na problemática de que “o drama do homem consiste em, para ser homem, ter que se civilizar e deixar de ser ‘natural”.

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Signos e sinais que apontam o retrocesso… Onde a sua cauda ficou presa? (Img Web)

Cultura e civilização são tratadas na obra como antagônicas à barbárie, esta última entendida como a prevalência do uso da força, ou ainda, a busca de forma instintiva, da satisfação da sua vontade/prazer a qualquer custo.

A civilização ao nos privar de parte de nossa satisfação, gera um mal-estar, pois a energia psíquica não encontra realização imediata. (Não está em conformidade com minha vontade eu não aceito. Se não aceito, não deve existir).

A civilização depende da canalização dessa energia (libido) para outras formas de “realização” compatíveis com a vida social, gerando ao indivíduo os benefícios da convivência e do reconhecimento social. Através da sublimação (canalização da energia pulsional para o trabalho e produções artísticas e científicas) obter-se-ia um apaziguamento parcial do instinto primitivo.

Embora os textos políticos de Freud, como “O mal-estar na civilização” e “O futuro de uma ilusão” tenham intentado com razoável êxito, ampliar o alcance da teoria psicanalítica, as críticas que se seguiram, como as do sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980), focaram-se principalmente na forma abstrata com que o diagnóstico da civilização foi feito, com pouca atenção ao exame das condições concretas dos indivíduos nas sociedades capitalistas.

O processo civilizatório brasileiro

Partindo dessa crítica e voltando o foco da reflexão para a realidade brasileira, recolocamos a pergunta esboçada no início deste texto, reiterada nos últimos anos e acalorada com o atentado em Brasília: quem são esses indivíduos e que caminhos percorreram para se tornarem o que hoje são? Que atalhos foram tomados que tornaram tão precário, ou inexistente, o aprendizado para a vida social na trajetória desses indivíduos? Eles compatibilizam o pedaço de pau, a bandeira e o celular – que deveriam representar momentos distintos de uma longa trajetória humana marcada pelas transformações tecnológicas e culturais – como instrumentos equivalentes e legítimos de participação política?

Há uma fértil literatura brasileira apta a responder essas perguntas na perspectiva da história da “civilização brasileira”. O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) é um dos mestres que nos ofereceu isso.

Recorrendo ao seu livro “O processo civilizatório” (1968) temos a oportunidade de nos encontrar numa história de mais de dez mil anos, por meio de uma abordagem epistemológica autônoma, anticolonial e alternativa à narrativa estritamente ocidental e cristã da humanidade. Suas páginas lançam luzes sobre a trajetória formadora do povo brasileiro e sua inserção na modernidade.

Darcy nos mostra que a ideologia operante durante o colonialismo no Brasil moldou todas as instituições que plasmaram a nacionalidade brasileira, na qual o mando de uma elite governante e dos detentores dos meios de produção – agentes da civilização – fizeram valer mitos e valores exógenos forjados por princípios e preconceitos como o da condenação da “preguiça dos indígenas”, do poder redentor do trabalho imposto pelos senhores aos seus escravos e subalternos, do império da vontade de Deus sobre a natureza dos homens e da honorabilidade da família patriarcal (contraditoriamente negada como possibilidade aos escravizados).

Tal ideologia, perversa e hipócrita, ainda hoje se manifesta e se reproduz na sociedade brasileira, através de seus “cidadãos de bem”. Em contextos de autoritarismo aflorado, como visto sob o governo Bolsonaro, evidencia-se a conduta também de parte dos subalternizados em atitudes de submissão voluntária e reprodução do discurso do opressor. Arbítrio, ignorância e pobreza de todas as ordens se combinam tragicamente.

Embora com contextos muito diferentes, mas com sentidos aproximados, a discussão sobre processo civilizatório, tanto em países do Velho Mundo quanto no Novo Mundo, colonial e pós-colonial, implica em refletir, em algum momento, sobre a relação entre educação e civilização. Idealmente a educação se erigiu como processo de refinamento das condutas e autocontrole nas relações sociais e pessoais, com aumento da consciência na regulação do comportamento.

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As relações entre senhores brancos, militares e a opressão do negro escravo ainda tem laços fortes no Brasil! (Img. Web)

A educação cerceada no Brasil

Por séculos restrita a uma ínfima elite, a educação escolar no Brasil nunca foi emancipadora, foi sempre instrumento de reprodução e conformação social, concebida e implementada – com raras exceções – por uma elite branca formada por valores conservadores, incapaz do exercício crítico de sua própria condição no mundo.

O educador Anísio Teixeira (1900-1971), considerado o criador da escola pública no Brasil por defender a universalização do ensino público, laico e gratuito, objetivando a igualdade de oportunidades entre as pessoas, integrava em sua visão de desenvolvimento, as dimensões individual e coletiva.

É de Anísio Teixeira a acurada explicação de que “a escola, através da história, constitui instrumento de controle social, de manutenção do tipo e qualidade de sociedade dominantemente aceitos. Daí dizer-se que plasma o caráter nacional, que difunde uma cultura geral, que não é geral, mas forma específica da cultura dominante no país, além de treinar os educados para certos tipos de ocupação, o que faz, entretanto, dentro do espírito e das peculiaridades da sociedade”.

E quais foram os elementos arregimentados por essa “cultura geral” que plasmou o caráter nacional no Brasil? Caio Prado Júnior (1907-1990) formulou que “a base da cultura brasileira é o engenho, é o binômio casa grande & senzala”.

Teixeira bem diagnosticou a extrema dificuldade de mudança na educação “seja na organização escolar, seja no conteúdo da educação, ou seja na expansão das oportunidades escolares” dada a relação orgânica entre educação e sociedade. Não bastam reformas curriculares adaptáveis a uma mesma concepção de conhecimento e, tampouco bastará expansão de vagas em escolas públicas e privadas.

A manutenção da educação formal, voltada apenas a treinar indivíduos para realizar determinadas funções no sistema de produção e distribuição de mercadorias e serviços certamente só reproduzirá e agravará os problemas estruturais da sociedade brasileira, dentre os quais a precária cidadania existente no país.

O prato raso da ignorância

A educação formal instrumentalizada para criar um espírito de devotamento à própria sociedade, injusta e desigual como é no Brasil para a maioria da população, desvirtua e deslegitima a escola como instituição social idealmente dedicada ao desenvolvimento integral do ser humano.

Desde muito, já está diagnosticada a necessidade de mudanças profundas no conjunto de atitudes e hábitos pelos quais a sociedade brasileira acostumou-se a caracterizar o “homem educado”.

O ataque às sedes dos Três Poderes em Brasília, seguido da divulgação de imagens e informações sobre seus autores materiais e intelectuais, ilustram com lastimável nitidez o que os parágrafos anteriores expuseram. Quem são e como agem esses autoproclamados “cidadãos de bem” que nos últimos anos, vestidos com as cores da bandeira nacional (seleção de futebol da CBF)* ocuparam avenidas e praças bradando vazios slogans moralistas?

*[N.E.: CBF é uma entidade de caráter privado ligada ao governo (e que se diz do estado por manter relações com Ministério do Esporte) que tem contratos com inúmeras empresas, e que por força destes contratos, tem entre seus jogadores, alguns praticantes do nobre esporte inglês do Brasil. 95% deles pertencem a times estrangeiros. É só um grande negócio que explora os sentimentos e as emoções de grande parte da população)].

Sendo a Esplanada, um espaço de valor material e simbólico reunindo expressões elevadas da arquitetura, da engenharia, das artes, do direito, da política, do empenho do trabalhador comum que ergueu uma capital modernista em meio ao cerrado, é também registro da história da nação em sua marcha ao futuro.

A fúria destrutiva dirigida contra esses símbolos tem sido interpretada por alguns como eloquente expressão da ignorância, da vileza de espíritos brutos (ou embrutecidos?), da incapacidade de reconhecer valor simbólico, intangível em realizações mais elaboradas do talento humano. E o que dizer da ignorância em relação à política? Uma verdadeira overdose de contradições. O que será que significa para eles “tomar o poder”? Qual o sentido da destruição de prédios e obras de arte? Que patriotismo é esse? Que moral é essa desses hipócritas moralistas? Que pátria defendem? Defendem de que e para quem? Que nação pode ser “melhorada” a partir da disseminação de ódio e de fake news?

Além do espetáculo patético da autoincriminação produzida por meio de selfies e vídeos postados nas redes sociais, o que dizer desse desejo de protagonismo, desses medíocres e torpes indivíduos?

Presunção de inocência e responsabilidades

E engana-se quem, insiste no discurso de que são pobres desgraçados aliciados por trocados e promessas vazias. Entre os perpetradores dos crimes estão empresários, funcionários públicos, políticos, pastores evangélicos, militares, agentes de segurança, professores(!), aposentados e uma miríade de outros “cidadãos”, inclusive uma extensa lista de autores de crimes pregressos e fugitivos da lei.

É mais que oportuno indagar, que papel teve a escola na vida dessas pessoas? O que sabem da história do país que contraditoriamente orgulham-se ao carregarem a bandeira nas costas? O que seus professores lhes ensinaram sobre a construção dessa nação que rompeu com o colonialismo há dois séculos e, desde então, luta contra as forças do atraso e da opressão? O que sabem da luta por soberania e autonomia desse país no sistema internacional de nações?

Alguma vez, algum devotado professor lhes sugeriu pensar a formulação do filósofo francês, Jean-Paul Sartre (1905-1980), a respeito da relação entre liberdade e responsabilidade? Sartre sentenciou: é livre quem não é escravo da vontade ou, ainda, a liberdade reside em aceitar as consequências dos próprios atos.

Já ouviram falar do paradoxo da tolerância, formulado pelo filósofo austro-britânico Karl Popper (1902-1994), defensor da democracia liberal? Popper respondeu à pergunta “devemos tolerar os intolerantes?” com a seguinte resposta: “para ser verdadeiramente tolerante, a sociedade deve ser intolerante à intolerância” pois, prossegue ele “a tolerância ilimitada leva à extinção da própria tolerância”.

E da pedagogia desenvolvida pelo admirável educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) o que sabem, além de infâmias a ele dirigidas? Sabem de sua defesa da educação como prática da liberdade?

Os anos recentes foram pródigos em repetir violências do regime militar que governou o Brasil por vinte e um anos (1964-1985). Perseguição e difamação foram as armas utilizadas contra Freire, admirado em todo o mundo.

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Tem uma história que não se pode apagar. (Img. Web)
O papel em branco da Educação

É triste observar que a profissão de professor, especialmente das áreas de Humanidades, venha sendo sistematicamente vilipendiada, amesquinhada por toscos gestores que elegem disciplinas exatas, como as únicas importantes na formação de jovens, sob a alegação da “demanda do mercado”. Fundamentalmente, em um país com tamanho déficit de conhecimento histórico, filosófico e sociológico, de habilidades de leitura, interpretação de textos, de pensamento crítico, além de tantos outros.  

Realizam aquilo que Paulo Freire, criticamente, chamou de “educação bancária”.

Nesse ambiente, professores de disciplinas formativas (de cidadãos), destacadamente das escolas privadas, trabalham sob assédio moral persistente, tratados como insumos sempre passíveis de processos de otimização e maximização de resultados.

Em vez da compreensão dos desafios para a superação de problemas estruturais que impedem o desenvolvimento econômico e social do país, o que se vê é o treinamento através de plataformas digitais e softwares desenvolvidos por empresas estrangeiras, para a reprodução de processos alheios aos interesses legítimos nacionais. Seduzidos pela tecnologia se convertem em meros operadores, sem compreensão da tecnologia como processo e sem qualquer senso crítico, acerca de impactos da tecnologia sobre a vida das sociedades.

No lugar de ensinar Macroeconomia, Finanças Internacionais. Negando o estudo de agregados macroeconômicos como medidas de produção de bens e serviços,  na correspondente geração de emprego e renda. Querem aulas sobre mercado financeiro e estratégias especulativas para o ganho fácil. Em vez da análise crítica sobre processos de precarização das relações entre capital e trabalho, a propaganda barata de empreendedorismo e simulações de jogos, num exercício de gameficação da vida.

O golpe não prosperou

O exposto neste texto e muito mais que pode ser encontrado, nas dimensões empírica e teórica para respaldar essa reflexão, parece-nos ajudar a responder às perguntas lançadas no transcurso da reflexão. O golpe não prosperou e mais de mil integrantes da turba foram encarcerados. Os crimes imputados são diversos.

Em recente entrevista o Ministro da Justiça do Brasil, Flávio Dino, teceu a seguinte avaliação:  O 8 de janeiro terminou servindo como ponto de virada para a democracia brasileira. Foi o dia da infâmia, mas foi também o da mais contundente resposta da democracia brasileira”.

Que a avaliação esteja certa e que o povo brasileiro em toda a sua diversidade, tenha discernimento para compreender e condenar aqueles episódios e, por fim, saiba apreciar essa vitória, sabendo que a luta não terminou. Criminosos presos é como podem ser referidos neste momento, parte daqueles que violentaram a nação.

Por enquanto, os mentores que estimularam, apoiaram e financiaram estão soltos e continuam se autodenominando “cidadãos de bem”. A parte da sociedade que se sentiu agredida, persevera animada por projetos de futuro com justiça social e prosperidade para todos.

As boas realizações do espírito humano deixaram marcos importantes na longa trajetória da humanidade entre o pedaço de pau, as bandeiras e o celular, mas não podem ser esquecidos os marcos de destruição, desonra e morte.

A marcha da humanidade assim deverá prosseguir.

Arnaldo Francisco Cardoso, sociólogo e cientista político (PUC-SP), escritor e pesquisador.

Referências:

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise. São Paulo: Companhia das letras, 2010.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos. São Paulo, Companhia das letras, 2012.

RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

TEIXEIRA, Anísio. Educação e a sociedade brasileira, In: Educação no Brasil, Rio de Janeiro, 1999.

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Redação

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