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Papa Francisco e Paulo Freire

Interlocução das ideias e ideais da Educação.

“… a escola é um lugar de encontro. […]E nós hoje precisamos desta cultura do encontro para nos conhecer, para nos amar, para caminhar juntos.Papa Francisco. Discurso aos estudantes e professores das Escolas Italianas, 10.05.14

Profº Dra. Antonia Maria Nakayama

“A alegria de ensinar-aprender deve acompanhar professoresve alunos em suas buscas constantes.”
Paulo Freire. Pedagogia da tolerância. Paz e Terra, São Paulo. 2013. p. 199

Ao falar de educação posso recorrer a famosos educadores e filósofos que dedicaram suas vidas à reflexão da finalidade, aos processos metodológicos e à interação educador-educando.

São Paulo, 18/05 de 2020.

4 Minutos

Um deles, o meu preferido desde que conheci sua pedagogia do oprimido nos anos 1970, enquanto ainda estudante, é Paulo Freire. E em suas ideias tenho inspirado minha ação de professar a visão que tenho do mundo e do poder da Educação aos meus educandos, em diferentes contextos educacionais.

Assim, trago neste texto algumas dessas ideias, porém, em um contexto diferente. Pretendo expor as ideias de Paulo Freire que se coadunam com as ideias de um pensador crítico da realidade, embora não educador, o Papa Francisco.

O Papa argentino Francisco, nascido em 17 de dezembro de 1936, com o nome de Jorge Mario Bergoglio, em Buenos Aires, foi eleito pelo conclave de 13 de março de 2013 e, desde então, tem exposto nos diferentes lugares em que visita, seu recado sobre a ação educadora, sobre a função social da escola e sobre o papel dos professores. O registro dessas ideias é um texto valioso[1], que nos surpreende pela profundidade das reflexões e pelo apontamento dos caminhos para uma educação libertadora.

São ideias verbalizadas em discursos em diferentes países, em diferentes contextos sociais, para diferentes públicos, tendo, porém, algo em comum, sua crença no papel social da educação na luta do povo por uma vida melhor.

O mestre brasileiro Paulo Freire, nascido em 19 de setembro de 1921, em Recife, dedicou sua vida à educação, iniciando pela educação de adultos e, com a criação do seu método de alfabetização, influenciou inúmeros professores e pesquisadores do país e chegou ao mundo por meio de seus livros traduzidos, suas palestras e cursos, recebendo inúmeros prêmios em sua brilhante atuação profissional na área educacional.

Ao ter contato com o documento em que o Papa Francisco (2016) expõe suas ideias sobre a educação, fiquei surpresa. Surpresa porque não conhecia essa sua preocupação, surpresa pela profundidade de suas reflexões. Descobri, então, enorme sintonia entre seu pensamento e do nosso querido Paulo Freire, passando a cotejar essas reflexões com as freirianas e, delas recolhi especialmente aquelas que falam de seu trabalho nos círculos de cultura, visando a transformação social.


Papa Francisco abençoa o ex-presidente Lula por ter tirado 30 milhões da Miséria

PAPA FRANCISCO. Confederação Interamericana de Educação Católica, 24ª edição do Congresso Interamericano de Educação Católica. São Paulo: de 13 a 15 de janeiro de 2016.

A ABERTURA AO MUNDO EM UMA METODOLOGIA DIALÓGICA

Muitos educadores reclamam da postura de seus alunos. Acompanhando a cultura contemporânea que preconiza a rapidez e a pressa, muitos educandos não apresentam interesse em aprender, demorando um tempo precioso em cada início de aula para conseguir atender à comanda do professor. Em contraposição, diz Freire (1996), que os educadores devem reforçar as capacidades críticas de seus alunos e sua curiosidade.

Para tanto, devem se preocupar com a escolha das atividades que tornem os educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes … “ seus educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” (FREIRE, 1996, p. 28-29).

Essa postura docente faz toda diferença na condução do processo de aprendizagem, que necessita ser aberto ao mundo, a novas realidades, ao outro diferente. O ambiente dialógico é ressaltado por Freire (1996) quando constata que o professor deve aprender a escutar.

Escutando eu aprendo a falar. Um professor formador progressista sabe exatamente quando tem que perguntar a palavra e quando tem que trocar a palavra… Há um momento em que o educando precisa escutar o educador, mas há um momento em que o educador precisa escutar o educando e há momentos em que os dois se escutam entre si. (FREIRE, 1996, p. 28-29).

Em discurso proferido aos estudantes e professores de um Colégio japonês em viagem a Roma (21.08.13), o Papa Francisco enfatizou a abertura ao mundo proporcionada pela educação: “…conhecer outras pessoas e outras culturas nos faz sempre bem, nos faz crescer. E por quê? Porque se nos isolamos em nós mesmos, só teremos o que temos, não poderemos crescer culturalmente; mas se formos ao encontro de outras pessoas, culturas, modos de pensar e religiões, sairemos de nós mesmos e começaremos a aventura tão bonita chamada “diálogo”.

Paulo Freire (2011) também expressa essa preocupação ao explicar que cada relação de um homem com a realidade é, desse modo, um desafio ao qual deve responder de maneira original. Ao responder aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura. No ato de estabelecer relações, no ato de responder aos desafios da natureza ou de traduzir para uma ação criadora a aquisição da experiência humana feita pelos homens que o rodeiam ou que o precederam.                                   

E esse educador não é uma pessoa fechada que segue exatamente o que seu material didático direciona pois, ao contrário, tem abertura ao novo, à vida de seus alunos, ao que vivenciam em seu contexto social.

O Papa Francisco também fala da figura do educador e da sua tarefa específica. Para ele, educar é um gesto de amor, é dar vida. “E o amor é exigente, requer que utilizemos os melhores recursos, que despertemos a paixão e que nos coloquemos a caminho com paciência, juntamente com os jovens.” (Discurso aos participantes da plenária da Congregação para a Educação Católica, 13.02.14).

Freire, então, enfatiza que o professor deve evitar a repetição mecânica do gesto, e acentuar a expressão dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, e do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem. (FREIRE, 1996).

A educação, para o autor, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento e de aproximação crítica da realidade. E essa aproximação ocorre a partir da conscientização, processo que resulta da aproximação do mundo, em um contínuo olhar para a realidade a partir da unidade dialética, a práxis, a ação-reflexão, de maneira a constituir o modo de ser ou de transformar o mundo. A conscientização, como compromisso histórico, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo.

O PROCESSO DE CONSCIENTIZAÇÃO:
DA INCONSCIÊNCIA INGÊNUA À CONSCIÊNCIA CRÍTICA

Os seres humanos como sujeitos históricos, inseridos em seu tempo e que, portanto, se movem no mundo, são capazes de optar, de decidir, de valorar e, como tal, podem contribuir para a construção de novas possibilidades e o processo educacional pode promover a construção de uma cultura de liberdade.

Paulo Freire acentuou em sua obra a falsidade da neutralidade da educação, antes reforçando seu papel político no processo de conscientização do ser humano que, por meio da dialogicidade e voltando-se à realidade social, é capaz de promover ações de desvendamento da realidade.

Para Freire (2011, p. 32) a conscientização implica utopia, pois “quanto mais conscientizados nos tornamos, mais capacitados estamos para ser anunciadores e denunciadores, graças ao compromisso de transformação que assumimos”.

Em seu meio social, a maior parte das pessoas está imersa no que denomina Freire (2011) como: de intransitividade da consciência, referindo-se ao estado de alienação em que, preocupados com sua subsistência, não se percebem como seres históricos.

Para Freire, por meio da educação, dialógica, esse estado pode ser questionado a partir da problematização da realidade, evoluindo para a transitividade ingênua em que ainda as pessoas estão presas a explicações fabulosas com ideias superficiais e preconceituosas, marcadas pelo senso comum.

Dessa etapa para a transitividade crítica, marcada pela responsabilidade social e política, fruto da compreensão da humanidade como histórica e não determinada, o caminho passa pela educação emancipadora, democrática e inclusiva.

E, para isso, a dialogicidade há de ser verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela como forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. (FREIRE, 1996)

O Papa Francisco também considera que o papel da educação se refere à abertura do educando para o mundo. “Não devemos resignar-nos à monotonia do viver cotidiano, mas cultivar projetos de amplo alcance, ir além do ordinário: não vos deixeis roubar o entusiasmo juvenil!” (Homilia, Celebração das Vésperas com a participação dos universitários de Roma, 30.11.13).

A necessidade da dialogicidade na educação e de sua função social de apresentar o mundo às crianças e adolescentes, que estão presentes nas ideias de Paulo Freire e do Papa Francisco, constituem o desafio educacional da nova geração.

São pessoas em desenvolvimento que necessitam de orientação para compreenderem não somente a complexidade do mundo em que vivem, as contradições nele presentes, como as possibilidades de sua atuação para promover a mudança e, nesse sentido, Freire (2011), contribui para elucidar o caminho que pode levá-las a tomar consciência e acreditar que outro mundo é possível. 

A ABERTURA AO CONHECIMENTO E AO NOVO
NOS CÍRCULOS DE CULTURA

Freire (2011) enfatiza que a educação deve considerar a vocação ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: um lugar exato,  em tal momento, em tal contexto… Cada relação de um homem com a realidade é, desse modo, um desafio ao qual deve responder de maneira original. Não há modelo típico de resposta, senão tantas respostas diferentes quantos são os desafios… E ainda é possível encontrar respostas diversas a um mesmo desafio…

A resposta que um homem dá a um desafio não muda só a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem, cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente. No ato de responder aos desafios o homem se cria, realiza-se como sujeito, porque essa resposta exige dele reflexão, crítica, invenção, decisão, organização, ação. Pela ação e na ação o homem se constrói como homem.                                     

Em discurso proferido aos estudantes e professores das Escolas Italianas (10.05.14), o Papa Francisco acentuou que os professores são os primeiros que devem permanecer abertos à realidade com a mente sempre aberta para aprender.

Pois, se um professor não está aberto para aprender, não é um bom professor, e nem sequer é interessante; os jovens compreendem, “farejam”, e são atraídos pelos professores que têm um pensamento aberto, “incompleto”, que procuram “um mais”, e assim contagiam os estudantes com esta atitude. (PAPA FRANCISCO, 10.05.14).

Nesse sentido, Freire (2003) cita que o verdadeiro educador é aquele que chega à sala, põe um objeto de conhecimento como mediação entre ele e os outros e, então, ali, assume o papel de sujeito que quer conhecer e convida os educandos a assumirem o papel de sujeitos que querem conhecer…

Como ele tem conhecimento prévio desse objeto, vai reconhecer o seu conhecimento desse objeto, no conhecimento que os educandos começam a ter desse objeto. Assim, em lugar de transferir conhecimento, todo dia conhece de novo.

Quando criou sua metodologia, inicialmente na condução do processo de alfabetização, fez questão de colocar de maneira bem definida os passos para se alcançar a participação efetiva do educando, prevendo que a educação esteja, em seu conteúdo, programas e métodos, adaptada ao seu fim, ou seja, o de permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história.

Educador e Educando – via de mão dupla

Ao ser realizada uma reflexão crítica de ambos, educador-educando e educando-educador, o processo de educação há de relacionar o ato de transformar o mundo com o ato de pronunciá-lo, que implica na existência de dois contextos dialeticamente relacionados: o teórico representado pelo autêntico diálogo educador-educando e o concreto, representado pela realidade social em que os educandos estão inseridos.

Essa análise envolve um exercício de abstração, por meio da qual as representações da realidade concreta possam ser analisadas para alcançar a razão de ser dos fatos, em um contínuo processo de ação-reflexão-ação, passando por algumas etapas.

1ª ETAPA – A CODIFICAÇÃO. Nessa etapa se realiza a codificação das situações existenciais dos educandos, que pode ser feita por eles ou pelos educadores, na forma de desenhos, fotografias, vídeos, textos ou a dramatização de uma cena, como uma imagem que será apresentada na forma de um discurso a ser lido.

2ª ETAPA – A DESCODIFICAÇÃO. Trata-se da primeira etapa da descodificação, ou seja, a leitura descritiva dos dados apresentados. Por exemplo: “Vemos dois homens e três mulheres trabalhando. O patrão olha para eles de seu cavalo. Lá longe veem-se umas árvores, passarinhos nos galhos e animal pastando. O céu escuro indica chuva”. (FREIRE, 2011, p. 82-83).

3ª ETAPA – PROBLEMATIZAÇÃO. Em seguida passa-se para a problematização da situação codificada, partindo da análise do contexto concreto, em que educadores e educandos tomam distância do objeto de conhecimento para alcançar a compreensão profunda dele. Se incialmente foi necessário cindir a realidade em suas partes constituintes, o momento atual é o de retotalização do que foi cindido.

Nesse esforço, os educandos percebem relações entre os fatos, que antes não percebiam. Em lugar de receberem uma explicação em torno desse ou daquele fato, os educandos analisam com o educador aspectos de sua própria existência, em suas implicações mais diversas.

Freire (2011) acentua que no processo de descodificar representações de sua situação existencial e de perceber sua percepção anterior dos mesmos fatos, aos poucos os alfabetizandos começam a questionar a opinião que tinham da realidade e a vão substituindo por um conhecimento cada vez mais crítico dela.

Ensinar é teoria e prática – Unidade dialética

A transmissão de informações para serem memorizadas pelos educandos em que  o educador repete o que leu dá lugar a um ato de verdadeira educação em que o educando é o sujeito do processo de aprender, e a responsabilidade do professor é maior, ao proporcionar o ambiente desejado dos estudantes que, curiosos, querem conhecer o mundo em que vivem.

Quanto mais avança a problematização e os educandos adentram na intimidade do objeto de conhecimento, tanto mais vão se tornando capazes de desvelá-lo.  O ato de desvelar, porém, não constitui o engajamento automático na ação transformadora, pois há um caminho histórico e peculiar entre o desvelamento e a prática dirigida no sentido de sua transformação.

A conscientização que se autentica nas idas e vindas, nessa unidade dialética entre a prática e a teoria, é representada pela paciência que não se identifica com a pura espera, mas que, associada à esperança, promove o agir no possível, vislumbrando o impossível, pois “a melhor maneira de tornar o impossível possível é realizar o possível e hoje” (FREIRE, 2011, p. 98).

E nesse momento nos lembramos das palavras do Papa Francisco aos educadores: “Não desanimeis diante das dificuldades apresentadas pelo desafio educativo! Educar não é uma profissão, mas uma atitude, um modo de ser; para educar é preciso sair de si mesmo e permanecer no meio dos jovens, acompanhá-los nas etapas de seu crescimento, pondo-se ao seu lado. Dai-lhes esperança, otimismo para o seu caminho no mundo. (Respostas às perguntas dos representantes das escolas dos Jesuítas na Itália e na Albânia, 07.06.13).

E mais uma vez recorremos ao mestre Paulo Freire (1992, p. 91) que, esperançoso, não nos deixa esquecer de que não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança. “(…) Não posso entender os homens e as mulheres, a não ser mais do que simplesmente vivendo, histórica, cultural e socialmente existindo, como seres fazedores de seu caminho que, ao fazê-lo, se expõem ou se entregam ao caminho que estão fazendo e que assim os refaz também.”

Em um tempo sombrio, em que a Educação, por tanto tempo estudada em sua função social de promotora do desenvolvimento das pessoas e da sociedade, perde sua importância e potencial de levar a esperança aos que se sentem excluídos da sociedade, falar das ideias e dos ideais do Papa Francisco e do mestre Paulo Freire, na postura esperançosa que ambos atribuem ao papel dos jovens no mundo,  pode trazer aos educadores o alento de que necessitam para transformar o medo em coragem, o desânimo em propulsão, a fraqueza em força para que estejam junto aos seus educandos, dos mais corajosos aos mais tímidos, dos mais conscientes aos mais alienados, dos mais dinâmicos aos mais passivos, dialogicamente, trabalhando no mundo e vislumbrando o mundo em que querem viver.

Antonia Maria Nakayama, é Doutora em Didática FEUSP, Pos doutorada em Deficiência Intelectual FEUSP. Vice-presidente do NEPEL. Núcleo de Estudos, Pesquisa e Ensino Lego de Desenvolvimento Humano.
(VIDEO) – Diretora do Instituto Pipa a voar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo:  Paz e Terra, 1992.

___________. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, São Paulo: Paz e Terra, 1996.

___________. Paulo Freire ao vivo. São Paulo: Editora Loyola, 2003.

___________. Conscientização, teoria e prática da libertação. São Paulo: Centauro Editora, 2011.

PAPA FRANCISCO. Confederação Interamericana de Educação Católica, 24ª edição do Congresso Interamericano de Educação Católica. São Paulo: de 13 a 15 de janeiro de 2016.

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

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