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EDUCAÇÃO MUSICAL na ERA DIGITAL

DESAFIO – No ano passado fui convidada pela Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis para discutir o tema O Ensino de Artes na sociedade multitelas: percepções, impactos e enfrentamentos na Era da cidadania digital.

Teresa Mateiro

São Paulo, 21/11 de 2020.

3 Minutos

Uma das preocupações dos professores é a relação dos alunos com o celular em sala de aula. Iniciei dizendo que falar sobre isso era um desafio, pois entendo que estamos em um processo de aprendizagem frente a situações e comportamentos decorrentes da chamada concentração dispersa ou distração concentrada (ZUIM; ZUIM, 2018), provocada pelo vício de estarmos sempre conectados.

A preocupação dos professores de educação básica tem eco também na universidade. Por vezes, durante as aulas da disciplina de Estágio Curricular Supervisionado, da qual sou professora, vários estagiários ficam com os celulares na mão ou em frente ao laptop.

Não sei exatamente o que estão fazendo: se estão respondendo a mensagens do whatsapp, se estão acompanhando as postagens do facebook, se estão terminando algum trabalho para a disciplina do próximo horário, se estão pesquisando algo relacionado ao tema que estamos debatendo em aula. O certo é que a atenção de alguns deles está, no mínimo, dividida entre a aula e essa outra atividade com a tela ubíqua do aparelho celular.

É importante dizer que esse vício não é exclusivo dos alunos, mas também de professores, que em reuniões recorrem a seus celulares e notebooks. O modo como a capacidade de concentração se dispersa, mediante o uso das chamadas tecnologias digitais, de maneira geral, provoca preocupação aos educadores.

Quem cria – o Músico ou a máquina

A escola que vivenciei como aluna e como professora e a universidade onde trabalho são referências de uma realidade que parece ser distante do cenário evidenciado pela pesquisa e inovação pedagógicas, que apontam a explosão das tecnologias de informação e comunicação como responsáveis por um novo conceito de aprendizagem e de procedimentos de ensino.

O certo é que a sociedade digital e o processo de globalização mudaram, definitivamente, a vida cotidiana. Pérez Gómez (2015, p. 77) aponta três capacidades básicas para aprendermos a “viver, pensar, decidir e agir na atmosfera densa e mutante da era digital global” (p. 12). A primeira é “a de utilizar e comunicar de maneira disciplinada, crítica e criativa o conhecimento e as ferramentas simbólicas que a humanidade foi construindo até os nossos dias”.

A segunda é a “de viver e conviver democraticamente em grupos humanos cada vez mais heterogêneos, na sociedade global”. E, a terceira é “a de viver e atuar autonomamente e construir o próprio projeto de vida”.

Qual é o sentido da escola nesse cenário? O ensino de música corre o risco de ser ultrapassado pelas tecnologias? Novas formas de organização escolar são possíveis desde a LDB de 1994 e, por isso, várias instituições se reestruturam, transformando-se em escolas democráticas[1] – livres, alternativas, progressistas (SINGER, 2008).

Essas escolas apresentam características como: projeto coletivo no sentido compartilhado; metodologias que desenvolvam a capacidade de transformação; relações não hierárquicas entre estudantes e educadores; ambiente acolhedor, instigante e agradável; e, integração de saberes para a produção de outros modos de vida e currículo que fomenta a cultura local[2].

E no país – o que se busca com Educação Musical?

Acredito que o ensino de música no Brasil continua na busca por um norte, por diretrizes e orientações que possam estruturar e fundamentar os currículos e o planejamento dos professores atuantes na escola básica. Não temos um currículo nacional e não creio que almejamos por isso.

Entretanto, é imprescindível que haja clareza quanto aos objetivos da educação musical escolar. Percebo esta realidade, primeiro, por ser professora orientadora de estágios curriculares e, portanto, por visitar escolas com frequência, proporcionando-me contato direto com professores de música e suas práticas.

Dançar é um recurso pedagógico, mas a Música é um fim educativo em si mesmo.

E, segundo, por realizar e orientar trabalhos de pesquisa sobre aulas de música em escolas públicas, principalmente, da região sul do Brasil (MOTTA; MATEIRO, 2019; SANTOS JUNIOR, 2017; SILVA, 2016; EGG, 2016; VECHI, 2015; MADEIRA, 2015; MADEIRA, 2012; MADEIRA; MATEIRO, 2013; MATEIRO; EGG, 2013).

A partir da observação de aulas de música de sete turmas do ensino fundamental, de seis escolas diferentes em três cidades (duas em um mesmo estado) e dois estados (SC e PR), somando um total de 50 aulas foi possível verificar que: (a) as atividades mais comuns são as de cantar, tocar e dançar; (b) os instrumentos mais utilizados são: flauta doce, instrumentos de percussão (pandeiros, caixixi, chocalho, pau de chuva, surdo, congas, tantãs) e voz; (c) os professores acompanham as atividades com teclado, violão, flauta doce, percussão e voz; (d) o repertório é composto por canções do folclore e da música popular brasileira; e (f) as aulas de música acontecem, normalmente, na sala de aula tradicional.

Entre as três atividades – cantar, tocar e dançar – observa-se que o canto nas aulas de música é uma prática recorrente. É desenvolvida, principalmente, por meio de procedimentos de ensino como cantar com o auxílio de um CD e com o acompanhamento de instrumentos musicais.

A prática vocal está distanciada do ensino de conteúdos (intervalos, ritmo, forma, etc.) e de habilidades (afinação, entonação, etc.) musicais, sendo concebido, portanto, como uma ferramenta pedagógica ou para cumprir alguma função no cotidiano escolar.

A Estética é só uma das partes

O tocar um instrumento em sala de aula, geralmente, concretiza-se por meio da flauta doce e de instrumentos de percussão. A escolha por esses instrumentos evidencia: a relação entre o custo econômico e a possibilidade de ter um instrumento para cada aluno; a concepção de que a flauta doce é um instrumento apropriado para iniciar o estudo da leitura musical; e, a conexão dos instrumentos de percussão à cultura musical brasileira (ver MATEIRO; SCHMIDT, 2016).

Dançar nas aulas de música é outro recurso pedagógico. O corpo e o movimento fazem parte da cultura brasileira e tem relação estreita com a percussão e o folclore, como por exemplo, as cantigas de roda. Atividades de e com percussão corporal são comuns nas aulas de música.

O repertório é, normalmente, composto por canções populares e folclóricas de fácil execução e interpretação, carregando consigo elementos lúdicos que induzem as crianças a brincar, imaginar e a se expressar de forma espontânea, não considerando a música como um fim educativo em si mesmo.

Frente ao exposto é possível afirmar que nas aulas de música há uma tendência maior para a educação estética, ou seja, a música tem sido mais utilizada como um meio educativo, esquecendo o indivíduo, suas relações pessoais, sociais e culturais (ver ELLIOTT, 1995; ELLIOTT; SILVERMAN, 2015).

Além disso, em nenhuma dessas aulas houve a presença de atividades que envolvessem algum tipo de tecnologia, seja utilizada como ferramenta ou como conteúdo.

Outro exemplo concreto está relacionado aos estágios curriculares supervisionados. No segundo semestre do ano passado, 36 estudantes realizaram o estágio em escolas de educação básica e em espaços extras curriculares, perfazendo um total de 21 projetos, ou seja, alguns deles fizeram o estágio sozinhos enquanto outros em dupla.

Uso de apoio tecnológico

Desses projetos, dois foram elaborados considerando as tecnologias móveis como fundamentais para o desenvolvimento das aulas, isto é, apenas quatro alunos estiveram de fato envolvidos com tecnologias. É importante dizer que, na maioria das atividades as tecnologias foram utilizadas nos processos de ensino e aprendizagem como ferramenta.

Esses são apenas alguns dados que, por um lado, me surpreenderam, no sentido de considerar que mesmo vivendo de forma conectada, mesmo que a geração atual possa explorar qualquer época ou tipo de música a qualquer momento, mesmo que a tecnologia lhes permita acessar e mesclar ‘músicas’ de qualquer cultura, mesmo que possam criar e compartilhar música e compor música digital, ainda não consideram imprescindível o uso da tecnologia em sala de aula (MATEIRO; MAZERA, 2019).

Por outro lado, essa realidade me fez pensar que o ensino de música na universidade, na escola e em outros espaços de ensino e aprendizagem ainda está calcado em moldes bastante tradicionais – repertório, aulas expositivas, aulas individuais de instrumento, metodologias de ensino.

Metodologias e uma nova pedagogia musical nas escolas

É premente construir novos cenários e ambientes de aprendizagem, como ressalta Pérez Gómez (2015) e, para isso, destaco princípios de metodologias baseadas na elaboração de projetos e na investigação onde o professor atua como tutor, o aluno assume a responsabilidade de sua formação, a aprendizagem ocorre por meio do trabalho colaborativo e da resolução de problemas do mundo real, com abordagens multi e interdisciplinares, e a avaliação acontece através de  processos de autovaliação e avaliação por pares.

Esses princípios estão relacionados à nova ecologia do conhecimento, assim como iniciativas de livros e revistas em formato digital como esta, por exemplo, de acesso e aquisição livres, que influenciam a difusão do conhecimento e, consequentemente, o ensino e os recursos educacionais escolares.

Teresa Mateiro

Referências –

EGG, M. de S. A prática pedagógica de um professor na educação infantil: Um estudo sobre as atividades cantadas nas aulas de música. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Música, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2016.

ELLIOTT, D. J. Music Matters: A New Philosophy of Music Education. New York, NY: Oxford Press, 1995.

ELLIOTT, D. J.; SILVERMAN, M. Music Matters: A Philosophy of Music Education,2ª ed., New York, NY: Oxford Press, 2016.

GÓMEZ, A. I. Perez. Educação na Era Digital: a escola educativa. Porto Alegre: Penso, 2015.

MADEIRA, Ana Ester Correia. Todo professor é um herói: o professor e a motivação na aula de música. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade do Estado de Santa Catarina, 2012.

MADEIRA, Ana Ester Correia; MATEIRO, Teresa. Motivação na aula de música: refle­xões de uma professora. Percepta, v.1. n.1, p.67-82, 2013.

MADEIRA, A. E. C. Professor-pesquisador: análise, reflexão e mudança na aula de música. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Música, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2015.

MATEIRO, T.; SCHMIDT, B. W. Práticas percussivas nas aulas de música do ensino fundamental. DAPesquisa,  v. 17, p. 83-100-100, 2016.

MATEIRO, T.; EGG, M. de S. O canto na aula de música: reflexões sobre uma prática em uma escola pública. In: FÓRUM DE PESQUISA EM ARTE, 9., 2013, Curitiba. Anais… Curitiba: ARTEMBAP, p. 204-215, 2013.

MAZERA, A.; MATEIRO, T. Música, tecnologia e formação: um estudo com estagiários. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 24. Anais… Campo Grande: ABEM, 2019.

MOTTA, K.; MATEIRO, T. Cantando coisas de amor e da nossa história: a MBP na sala de aula. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 24. Anais… Campo Grande: ABEM, 2019.

SANTOS JUNIOR, P. J.. A percepção musical nas aulas de música: uma análise das atividades desenvolvidas em uma turma do 4º ano do ensino fundamental. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Música, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2017.

SILVA, R. de F. P. A. Abordagem interdisciplinar no ensino curricular de música: a percepção dos educadores envolvidos no projeto “Regiões brasileiras”. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Artes, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2016.

SINGER, H. Gestão democrática do conhecimento: sobre propostas transformadoras da estrutura escolar e suas implicações nas trajetórias dos estudantes. Relatório de pós-doutoramento, 2018.
Disponível em https://www.academia.edu/30667612/A_GEST%C3%83O_DEMOCR%C3%81TICA_DO_CONHECIMENTO_SOBRE_PROPOSTAS_TRANSFORMADORAS_DA_ESTRUTURA_ESCOLAR_E_SUAS_IMPLICA%C3%87%C3%95ES_NAS_TRAJET%C3%93RIAS_DOS_ESTUDANTES – Acesso em 06/02/2020.

VECHI, H. O canto na formação e na sala de aula: três estudos de caso. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Música, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2015.

ZUIM, V. G.; ZUIM, A. A. S. O celular na escola e o fim pedagógico. Educação & Sociedade, v. 39, n. 143, p. 419-435.

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP