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MPB Aldir Blanc e Outros

Já foi dito que a música popular brasileira é a melhor realização dessa nação que sempre ousou em manter acesa a chama da esperança e a aposta na beleza do encontro, do diverso e do insubmisso.

Arnaldo Francisco Cardoso

São Paulo, 23/05/2023

4,1 Minutos.

E foi com um belo jardim, espaço público do encontro, inaugurado no último 4 de maio, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, que foi homenageado um dos mais talentosos artistas do Brasil, o compositor e escritor Aldir Blanc (1946-2020), já imortalizado através das magistrais letras de suas canções nas vozes de grandes intérpretes da música popular brasileira.

A data do terceiro aniversário de sua morte convergiu com o anúncio feito pela OMS (Organização Mundial da Saúde), do fim da emergência sanitária da Covid-19, pandemia que provocou cerca de 7 milhões de mortes no mundo, dentre elas as de muitos representantes das artes brasileiras, como Aldir Blanc.

A música exigiu-lhe entrega

Nascido no Rio de Janeiro, o jovem Aldir Blanc formou-se como médico, com especialização em Psiquiatria, mas atuou na nobre profissão por poucos anos deixando-a para trilhar o caminho da arte, particularmente da música e da literatura. Não resistiu aos apelos de Eros.

Ao longo de cinco décadas de carreira produziu mais de 600 canções, em parcerias com João Bosco, Guinga, Moacyr Luz, Cristovão Bastos, Maurício Tapajós e Carlos Lyra. Com a escrita de crônicas para diversos jornais deu vasão à ironia e à crítica política e social. Entre 1978 e 1996 publicou seis livros, sempre com o Rio de Janeiro como presença inescapável, evidenciando seu amor pela cidade.

Mas dessa diversificada produção foram as letras de músicas, muitas delas produzidas em momentos críticos da vida nacional, que mais profundamente se imprimiram na alma da cultura brasileira.

MPB Aldir Blanc e Outros
Um mestre, suas referências, apoiadores e parceiros. (Img Web/AEL).
O encontro com Elis

Vivia-se o início da década de 1970, sob a ditadura militar e o acirramento da censura às artes quando Elis Regina gravou pela primeira vez uma música escrita por Aldir Blanc.

Cantando a solidão de uma mulher, Elis encontrou na letra de “Ela” (1971) a poesia para expressar o intimismo que a acompanharia como traço personalístico.

Depois vieram “Agnus sei” (1973) com acentuada dose de insubmissão a dogmas; em “Dois pra lá dois pra cá” (1974) foi a vez da sedução de mais um amor e a frustração do desencontro cantada em voz baixa “A tua mão no pescoço / As tuas costas macias/ […] Por quanto tempo rondaram / As minhas noites vazias […] Dejaste abandonada la ilusión / Que habia en mi corazón por ti” ”.

Em “O Mestre-sala dos Mares” (1974) é exaltada a ousadia e insubmissão do jangadeiro cearense Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, tornado símbolo da resistência popular abolicionista “o Dragão do Mar” – pouco reconhecido na história oficial –, que em janeiro de 1881 liderou uma greve portuária contra o mercado escravista.

A letra como um todo e, em particular, o refrão de “O Mestre-sala dos Mares” realiza em termos de sensibilização, o que não fez milhares de páginas da história oficial da Abolição, além de restituir a dignidade de sujeitos submetidos ao apagamento.

“Glórias às lutas inglórias”

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias / Glória à farofa, à cachaça, às baleias / Glória a todas as lutas inglórias / Que através da nossa história não esquecemos jamais / Salve o navegante negro / Que tem por monumento as pedras pisadas do cais”.

E não é menos pedagógica, despertando uma inteligência afetiva, a genial “Querelas do Brasil” (1978) com versos como:

O Brazil não conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil/ […[ O Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil / […] Do Brasil S.O.S. ao Brasil”

O refrão acima se integra em meio à exibição da riqueza linguística e cultural do país, desconhecida por elites de mentalidades colonizadas e servis.

O hino da Lei da Anistia

Se esta seleção de letras de tão elevado valor artístico e, por extensão pedagógico, já são suficientes para demonstrar a importância da obra de Aldir Blanc e, em particular, do fertilíssimo encontro com Elis Regina, a magistral “O Bêbado e a Equilibrista” (1978), escrita com João Bosco, elevou à mais uma potência toda essa construção.

Conta-se que a inspiração veio com a morte de Charles Chaplin no natal de 1977, aludida no verso de abertura “Caía a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto / me lembrou Carlitos”, o viaduto seria uma referência ao Elevado Paulo de Frontim, no Rio de Janeiro, que desmoronou em 1972, vitimando 29 pessoas.

Junta-se ainda na letra homenagem às viúvas “choram Marias e Clarices” de Manuel Fiel e Vladimir Herzog, mortos pela ditadura. No verso “Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil” ergue-se as vozes pela anistia do sociólogo Herbert José de Sousa (o Betinho), irmão do cartunista Henfil, exilado do país desde 1971. A música se tornou o hino da Lei da Anistia de 79, a partir da qual muitos brasileiros exilados puderam retornar ao país.

A morte de Elis Regina em janeiro de 1982, aos 36 anos, interrompeu esse encontro extraordinário com Adir Blanc.

Outros encontros

Na biografia “Aldir Blanc – Resposta ao Tempo” (2013), escrita por Luiz Fernando Vianna, encontram-se registros de todas as parcerias e colaborações do compositor com intérpretes e cantores brasileiros, bem como informações sobre suas outras produções artísticas.

Vale mencionar aqui também as letras de Aldir Blanc interpretadas por Nana Caymmi, que se tornaram grandes sucessos de público como “Resposta ao tempo” (1998) e “Suave veneno” (1999).

A sensibilidade do compositor marcante em canções de protesto, transborda também sem preconceito, em letras onde o amor é narrado como experiência de intimidade e cumplicidade, ganhando contornos singulares como é próprio de cada relação, conectando o universal e o singular.

Isso pode ser sentido em versos como:  Eu bebo um pouquinho pra ter / Argumento” […] “Recordo um amor que perdi / Ele ri / Diz que somos iguais / Se eu notei”

E no refrão: No fundo é uma eterna criança / Que não soube amadurecer / Eu posso, ele não vai poder / Me esquecer”.

E em “Suave veneno” versos que calam na alma  dos que já experimentaram as desrazões do amor romântico.

Essa paixão tão intensa / Também é meio doença […] Se eu me curar deste amor / Não volto a te procurar / Minto que tudo mudou / Que eu pude me libertar”.

A declaração do amigo João Bosco

A resposta em relação ao quanto perdurará na cultura nacional as lições da música e das outras manifestações artísticas desse brasileiro tão fiel às suas crenças e ao valor dos encontros, só o tempo responderá.

Um sinal do seu impacto está na manifestação de seu amigo e parceiro musical João Bosco que após a notícia da morte de Blanc, escreveu:

Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior […] Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos.

Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. […] Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio”.

Em 29 de junho de 2020 foi aprovada no Congresso Nacional a lei nº 14.017 chamada Lei Aldir Blanc, de apoio à cultura.

Arnaldo Francisco Cardoso, sociólogo, escritor e professor universitário.

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Redação

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