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Impunidade a Quilo

Ao longo desses dois séculos de existência, a impunidade vem funcionando como um dos maiores combustíveis e alimento da ilegalidade e da violência do Estado brasileiro,

Viviane Gouvêa

Rio de Janeiro, 24/05/2023

1,5 Minutos.

No caso da chacina em Vigário Geral – prestes a completar 30 anos neste 2023 –, dos 33 indiciados no processo, 21 foram absolvidos e reintegrados à força policial. Mas, o sujeito que rouba um quilo de carne vai preso sem dó. Passa anos na cadeia, se não der a sorte de um bom advogado da defensoria pública se interessar pelo seu caso. O perfil de encarcerados no Brasil demonstra com bastante clareza que só pobre vai pro xilindró. Raramente enviamos para nossas prisões pessoas com alto poder aquisitivo ou capital político.

A impunidade se tornou um dispositivo eficiente que mantém abertas as possibilidades de escolha de um Estado muito pouco preocupado com o bem-estar dos cidadãos comuns. Não é à toa que no Brasil, ao contrário de outros países que passaram por ditaduras, especialmente as ditaduras militares da América Latina das décadas de 1960 e 1970, a anistia que foi concedida àqueles que a combateram de armas na mão teve que ser aplicada também aos agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, como torturas e execuções sumárias, práticas proscritas, inclusive, por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Sistema carcerário falido – estado de exclusão social

Assim, se o Estado não pune um dos seus agentes por práticas ilegais, e, nesse caso, que violam direitos humanos, a mensagem é clara: não tem problema arrancar unha de detento ou esfregar a cara do pivete no asfalto a uma temperatura de 55 °C. Faz parte do jogo e nossas leis não precisam ser aplicadas para todo mundo.

Impunidade a Quilo
Capa do livro da Cientista Social Viviane Gouvêa.(Img. Web)
O Pau de Francisco…

E mais, um sem-número de cidadãos do bem partilha dessa visão de mundo, e essa mensagem recebe apoio incondicional daqueles que se acham a salvo. Sendo assim  a verdade é que, se os agentes do Estado agem contra a ordem estabelecida pelo próprio, sem medo de represálias, torna-se difícil controlar o grau de violência utilizado, e mesmo seus alvos.

Apesar de a violência policial ter alvo certo (a população preta e pobre), o descalabro da nossa impunidade atualmente permite que fiscais do Ministério do Trabalho que denunciam trabalho escravo, juízas e vereadoras que investigam milícias, jornalistas estrangeiros e servidores públicos que denunciam desmandos e assassinatos na floresta sejam assassinados.

E o são por pessoas direta ou indiretamente ligadas às forças de segurança (públicas ou privadas), e a serviço de sabe-se-lá-o-quê. Tais soldados algumas vezes pagam a conta dos seus mandantes, encastelados no topo da hierarquia para não sofrerem sequer arranhões.

Mas o estrago já está feito.

Não dá para abrir as portas do inferno e escolher quais demônios vão sair pra passear.

Viviane Gouvêa – Cientista social – Mestre em Ciência Política pela UFRJ.

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Redação

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