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Quem está no Comando?

Ninguém parece discordar que a história da humanidade pode ser contada pelos avanços tecnológicos que marcaram cada época, assim como reconhecer que foi em função desses avanços que foram resolvidos problemas que impunham restrições à longevidade da vida e à realização de muitas das potencialidades humanas.

Arnaldo Francisco Cardoso

São Paulo, 24/03/2023

5 Minutos.

No presente, mesmo sendo também reconhecido por todos que as tecnologias digitais estão a cada dia impactando mais áreas de nossas vidas, a compreensão geral sobre essa realidade costuma ser feita por repetições do senso comum, alternando visões tecnotimistas e tecnocatastrofistas.

No horizonte do primeiro grupo, a crença é de que a tecnologia trará soluções eficientes de problemas e prosperidade para todos – ou ao menos para todos de sua bolha –, já para o segundo, a tecnologia substituirá e escravizará os humanos, subvertendo sem qualquer resistência, a relação criador e criatura.

Se é fácil afirmar que a razão não está com nenhuma dos dois, não é igualmente fácil produzir uma análise satisfatória, considerando os médios e longos prazos, com senso crítico, fundamentada em dados e evidências.

O crescimento exponencial da geração e disponibilização de informações que caracteriza o cotidiano da internet não tem sido acompanhado por uma expansão da capacidade humana de análise, nem mesmo contando com o suporte da ciência de dados.

Sendo um primeiro passo para a compreensão da realidade a reunião de seus elementos constitutivos, é válido realizarmos aqui esse exercício visando a superação do senso comum que, neste caso, tem sido contraproducente para a criação de respostas inteligentes diante dos desafios que as tecnologias hoje nos impõem.

Robôs ou humanos robotizados?

Um dos temores mais frequentes diante do desenvolvimento de “máquinas inteligentes” é o da substituição do trabalho humano por robôs. Embora o processo de automação em curso corresponda, resumidamente a isso, há um processo em evolução acelerada ainda mais nocivo, que é o da robotização de humanos.

Cobots

Desde 2017 a Amazon detém duas patentes para tecnologia vestível (wearables). Uma das aplicações para essa tecnologia é o rastreamento da posição física de um trabalhador (Amabot), incluindo a localização de suas mãos, que poderá emitir sinais diversos por meio de um aplicativo.

Sabe-se que a maioria dos armazéns da Amazon utiliza-se de cobots (colaboração de robótica e interação humana). Essa “colaboração” se faz necessária às organizações uma vez que determinadas habilidades humanas como classificar itens, os robôs ainda não executam com a mesma desenvoltura dos humanos.

Quem está no Comando?
Robôs recebem orientações através de softwares e aplicativos. (Img Web)

Também na área do transporte e da logística vê-se a utilização de sistemas igualmente “colaborativos”, “orientados por dados ainda mais extensos e intensivos que controlam igualmente frotas e funcionários”.

Wagish Bhartiya, Diretor Sênior da REI Systems, onde lidera a Unidade de Negócios de Software, relata a partir de sua vivência profissional que também “profissionais de vendas estão sendo rastreados automaticamente com base no número de telefonemas que fazem. 

Eles são monitorados pelo IP de telefones que estão conectados ao software CRM. 

Os funcionários de call center – primeiros na história da precarização mediada pelas TIC’s – têm hoje suas chamadas de clientes monitoradas, capturadas através de ferramentas de processamento de linguagem natural e otimizadas para minimizar o número de membros da equipe”.

Refletindo sobre isso, Bhartiya pondera: “Devemos considerar não apenas as implicações de substituir humanos por máquinas, mas também as consequências de tratar humanos como máquinas”.

Taylor e a Administração Científica

Já se passou mais de um século desde o lançamento do livro “Princípios de Administração Científica” (1911) do engenheiro mecânico Frederick Winslow Taylor (1856-1915) e, suas ideias, muito influentes naquela época, foram criticadas pelas teorias de Administração subsequentes.

Vale lembrar que no surgimento da linha de montagem a geração em massa de empregos nas fábricas demandava uma orientação para a organização e operação das atividades fabris. A teoria de Taylor visava maximizar a produção dos empregados através da medição de cada ação na linha de montagem. Com base nos dados reunidos visava-se identificar quais processos poderiam ser mudados ou implementados para o aumento da produção. Velocidade, escala e produtividade eram as metas e a eficiência operacional era o grande objetivo. A prática dos princípios tayloristas exaltava a simplificação e redução das ações humanas, tornando os comportamentos previsíveis e mensuráveis, a exemplo das máquinas.

O taylorismo digital

Em setembro de 2015 foi publicado na prestigiosa revista inglesa de negócios, The Economist e, em seguida republicado no jornal americano The New York Times, o artigo “Digital Taylorism”, com a seguinte frase em destaque: “Uma versão moderna da ‘administração científica’ ameaça desumanizar o local de trabalho”.

Essa nova versão da teoria de Taylor reafirma os princípios básicos da boa gestão, “mas os sobrecarrega de tecnologia digital e os aplica a um leque muito mais amplo de funcionários – não apenas os trabalhadores industriais de Taylor, mas também os trabalhadores das áreas de serviços, do conhecimento e os próprios administradores. No mundo de Taylor, os administradores eram os senhores do universo. No mundo digital, eles são meras peças do gigantesco computador corporativo”.

Citando várias multinacionais americanas o artigo descreve processos que combinam o fracionamento do trabalho industrial e também do administrativo em rotinas que podem ser desempenhadas por trabalhadores de média qualificação e com contratos precários, terceirizados ou em modalidades de “prestação de serviço individualizado”.

Quem está no Comando?
Treinando robôs. Substituições à vista? (Img. Web)

 

 

Todos esses trabalhadores sujeitos a processos de avaliação de desempenho, geralmente pontuando em escalas de 0 a 5, produzindo categorias de desempenho. Essa realidade já foi retratada em conhecido episódio da série distópica Black Mirror.

O referido artigo apontava que “a Amazon – gigante da logística global – representa particularmente essa nova tendência, a do ‘taylorismo digital’”. Relatou também a criação de Alex Pentland do Massachusetts Institute of Technology “um crachá ‘sociométrico’, que o funcionário deve usar no pescoço, e que avalia várias coisas, como o seu tom de voz, seus gestos e sua propensão a conversar ou ouvir”.

Contradições

Concomitantemente emergem inúmeras contradições que são geralmente desprezadas, ou sequer percebidas, pelos implementadores de tais processos.

Ao mesmo tempo em que a automação e a inteligência artificial robotizam pessoas e submete-as a rotinas desqualificadoras, repete-se mantras exaltando a excelência, a autonomia, a criatividade, a inovação e o espírito crítico. Tudo aquilo que é inviabilizado pela adoção acrítica de tecnologias orientadas pela busca de resultados para bem poucos.

Entre essas contradições levanta-se a pergunta: “Para que transformar os trabalhadores em máquinas quando as máquinas podem fazer cada vez mais e com menores custos?”

Tecnologia, precariedade e desemprego

Nesse ambiente, é crescente a pressão sobre as pessoas até o seu limite, institucionalizando o princípio do burn and churn (literalmente queimar e ir em frente).

Para gestores ou softwares, cada vez mais intercambiáveis, o burnout (esgotamento) de seus funcionários não passa de uma variável corriqueira a ser administrada, não raramente levando os funcionários a pensar que o mal é resultado de suas próprias debilidades.

Atualizar-se e adequar-se passa a ser a orientação frequente para lidar com os “novos tempos modernos”. E como representado na sinistra série sul-coreana da Netflix “Round 6”, sob os princípios do taylorismo digital “os trabalhadores são constantemente avaliados e os que não conseguem atingir as metas são eliminados”.

Como sentencia os estudiosos Brett Frischmann e Evan Selinger, após exposição de resultado de pesquisa sobre processos e sistemas tecnológicos de avaliação em curso, no artigo “Robots have already taken over our work, but they’re made of flesh and bone” de 2017, “o taylorismo moderno ameaça algo que esse tipo de análise de mercado não consegue capturar: o valor de ser humano”.

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As profissões do futuro e o (des)valor humano. Realidade? (Img. Web)
Para uma educação em tecnologia atenta a impactos

Considerando que o desenvolvimento material das sociedades deve se dar em concordância com uma ética da responsabilidade social, inspiradas por valores de liberdade e crença no desenvolvimento integral de cada indivíduo e da sociedade como um todo e justo defender que o desenvolvimento tecnológico esteja suportado por uma educação condizente.

Do livro “Ciência, Tecnologia e Sociedade” escrito pelo engenheiro mecânico e doutor em Educação Tecnológica, Walter Antonio Bazzo, consideramos pertinente destacar algumas problematizações que propõem uma reflexão e invocam uma atitude consequente diante da realidade criada pelo atual estágio de desenvolvimento tecnológico e que tem nos mostrado a necessidade de ações condizentes.

  • em vez da visão linear sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade faz-se imperioso reconhecer suas interrelações e mútuos impactos;

  • reconhecer a tecnologia como processo e não apenas como artefato, implica em identificar sujeitos, motivações e interesses;

  • é preciso colocar o processo científico-tecnológico no contexto social e defender a necessidade da participação democrática na orientação de seu desenvolvimento, afirmando sua dimensão pública;

  • uma educação científico-tecnológica implica uma reflexão explícita acerca dos valores tecnológicos, da forma como eles são gerados e como circulam nos diferentes contextos da sociedade;

  • é preciso garantir os espaços institucionais e sociais para a análise dos impactos tecnológicos, das políticas públicas de ciência e tecnologia, da gestão da ciência e da regulação política e social dos usos da ciência e das tecnologias.

Se a humanidade foi capaz de desenvolver recursos tecnológicos tão avançados deverá ser capaz também de garantir que sejam direcionados para o equacionamento de problemas por ela mesmo criados e promover um futuro de desenvolvimento para todos.

Arnaldo Francisco Cardoso, cientista político (PUC-SP), pesquisador, escritor e professor universitário.

[N.E.: Referências – siga os links.]

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Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP