CiênciasConteúdosEducadoresRecentes

Cultura Islâmica na Educação Básica

A despeito da mídia preconceituosa que mantém o foco em notícias nem sempre claras, com distorções muitas vezes intencionais, atualmente o Islamismo é uma das religiões com maior número de seguidores no mundo, e suas origens remontam ao século VII na Arábia com preceitos que pregam a paz, a justiça e a generosidade entre os povos.

Daniel Castro Andrade

São Paulo, 11/11 de 2021.

Texto longo.

O objetivo é apresentar reflexões de como o legado cultural islâmico está presente em nosso cotidiano e a importância do estudo desse tema no Ensino Fundamental e Médio. Para atingir tal objetivo, foi utilizada como metodologia a pesquisa bibliográfica onde autores como Farah (2009) e Hourani (1994) mostram a relevância da cultura islâmica na história e na compreensão do mundo atual, além disso, o artigo também aborda o conceito de interculturalismo, Candau (2012), visando ampliar assim a possibilidade de diálogo entre diferentes culturas.

Com a contribuição desses autores, pode-se observar a importância do legado da civilização islâmica nas diversas áreas do conhecimento humano como matemática, medicina, química, literatura, ciências, arte e filosofia, além disso, a influência da língua Árabe em nossa língua Portuguesa, Kemnitz (1991).

Além da religião, que se espalhou por diversas regiões e conquistou seguidores entre outros povos, a riqueza cultural difundida pela civilização islâmica está presente em diversas áreas do conhecimento humano como matemática, medicina, química, literatura, astronomia, ciências, arte e filosofia. Além disso, a língua árabe contribuiu para a constituição da língua portuguesa.

Trazer à luz as contribuições da civilização islâmica permite ampliar o diálogo e as relações entre as culturas, o que se coaduna com o conceito de interculturalismo que significa a interação entre culturas de forma recíproca, beneficiando o seu convívio e integração numa relação baseada no respeito pela diversidade.

Nesse sentido é essencial o reconhecimento e a valorização de diferentes culturas no contexto da Educação Básica.

Por que estudar o legado do Islã?

Hoje vivemos num mundo em que a diversidade cultural, religiosa, étnica etc. são perpassadas por preconceitos e intolerância que geram conflitos e que negam os direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro.

Os diferentes modos de pensar, viver e agir são parte da natureza humana e devem ser respeitados; assim a tolerância é condição primordial para a paz e o progresso da sociedade. Segundo a UNESCO (1995, p.11),

A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença.

A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.

Cultura Islâmica na Educação Básica
A Caaba é uma casa de oração – ‘Uma pedra negra trazida por um anjo do céu’. (Img. internet)

Se a tolerância é a harmonia na diferença, o conceito de interculturalidade, onde há o respeito a diversidade, está afinado com a declaração da UNESCO, de acordo com Vera Candau (2012 p. 244),  a interculturalidade aponta à construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas, verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais, o que supõe empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados.

Nesse sentido se justifica o estudo das diferentes culturas na Educação Básica, pois o preconceito tem suas bases na ignorância, no desconhecimento do outro e das contribuições das diferentes culturas para a constituição da cultura individual; como afirma Candau (2012 p. 242),  a educação intercultural é concebida hoje como um elemento fundamental na construção de sistemas educativos e sociedades que se comprometem com a construção democrática, a equidade e o reconhecimento dos diferentes grupos socioculturais que os integram.

O conceito de interculturalismo e tolerância também perpassa a desconstrução do estudo de uma única vertente ou concepção de história conforme Boaventura de Souza Santos (2011 p. 1), “o mundo diversificou-se, e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo”.

Diante disso faz-se indispensável o estudo das contribuições do legado islâmico nas mais diversas esferas do conhecimento e da cultura humana para a compreensão do mundo e a construção da cidadania dos educandos da Educação Básica.

Cultura Islâmica na Educação Básica
 80% de território da Península Arábica é deserto. (img. Internet)

Esse legado tem sua origem na Península Arábica, uma região de clima quente e seco, constituída de desertos em 80% de seu território. Até o século VII os árabes se constituíam em diversos clãs com vínculos de parentesco e elementos culturais comuns, segundo Hourani (1994 p.27) “parece ter havido um crescente senso de identidade entre as tribos pastoris, demonstrada no surgimento de uma linguagem poética comum a partir dos dialetos árabes”; nessa época e até os dias atuais a cidade mais importante era Meca.

Sua importância se deve a presença de um templo, a Caaba, onde os clãs cultuavam seus deuses e onde se encontra a Pedra Negra que teria sido trazida do céu por um anjo e entregue a Adão, o construtor do templo e mesmo personagem dos livros sagrados de judeus e cristãos.

Além de centro de peregrinações, Meca também era o maior centro comercial dos árabes e foi nesse contexto que um comerciante chamado Mohammad (Maomé na forma aportuguesada do nome), no ano de 610, enquanto meditava na montanha de Hira, localizada em Meca, recebe a visita do anjo Gabriel que lhe revela o primeiro versículo do livro que embasa a religião islâmica, o Alcorão revelado em língua árabe.

Nessa primeira revelação há a exortação a leitura, escrita e ao conhecimento conforme segue (Tradução…, 2004, p. 1044):

Lê, em nome de teu Senhor, que criou,
Que criou o ser humano de uma aderência.
Lê, e teu Senhor é O mais Generoso,
Que ensinou a escrever com o cálamo,
Ensinou ao ser humano o que ele não sabia
                                                                     (Tradução de Helmi Nasr)

As revelações se seguiram por 23 anos, totalizando mais de 6000 versículos divididos em 114 capítulos e onde se encontram os fundamentos da religião islâmica como: a crença na unicidade divina (Allah) e no último profeta Mohammad, a realização das cinco orações diárias, a purificação da riqueza através do pagamento anual de 2,5% sobre a riqueza excedente, que não pode ser classificado como imposto nem esmola, mas uma forma de distribuição da riqueza aos necessitados; a peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida e o jejum religioso durante o mês do Ramadã.

As revelações do Alcorão fazem parte do cotidiano do muçulmano, pois, incluem normas jurídicas, morais e políticas que orientam a vida; além do Alcorão outra fonte de orientação aos muçulmanos é o exemplo de vida e os ditos do profeta Mohammad.

Breve histórico.

Com o advento do Islã, o politeísmo e a idolatria na Caaba foram condenados, e temendo perder seu poder político e os lucros obtidos com as peregrinações ao santuário, os líderes da tribo coraixita passaram a perseguir implacavelmente Mohammad e seus seguidores.

Assim, no ano de 622 foi ordenado, através das revelações do Alcorão, que Mohammad e os muçulmanos imigrem para a cidade de Yatrib, hoje Medina, episódio conhecido como Hégira; nessa cidade os muçulmanos foram acolhidos e fundou-se o primeiro estado islâmico, onde se estabeleceu uma nova ordem política e social.

A Cultura Islâmica na Educação Básica
Medina, para onde o profeta Mohamad mudou-se para fundar o 1º estado islâmico. (Img. Internet).

Posteriormente, a cidade de Meca também foi incorporada à comunidade islâmica e o santuário da Caaba teve seus ídolos removidos e tornou-se um centro de peregrinação islâmico, onde os muçulmanos relembram a chegada de Abraão e seu filho Ismael a Arábia.

Após a morte de Mohammad em 632, foi escolhido, por consenso, Abu Bakr como seu sucessor, ou Califa, e a partir daí iniciou-se a unificação da Península Arábica e a posterior expansão e difusão do Islã que em 661 já alcançava parte da Pérsia e da Mesopotâmia, além do Egito e da Líbia; intensificando dessa forma as relações comerciais e o intercâmbio cultural entre os povos dos domínios islâmicos.

Com a morte do Califa Ali em 661 inicia-se um período onde os califas não eram mais escolhidos por consenso mas (Hourani, 1994, p. 44) “daí em diante o cargo passou a ser praticamente hereditário […] então o poder ficou nas mãos de uma família conhecida como os omíadas, nome derivado de um ancestral Umayya“.

A Dinastia Omíada perdurou até 750, chegando em 711 à Europa e dominando a península Ibérica (chamado de Califado Omíada de Córdoba – na Espanha)

Com a centralização do poder pelos Omíadas houve muita insatisfação dos povos não árabes que aceitaram o Islã, como os persas e iranianos, e rebelaram-se sob a liderança de Abu Al-Abbas, derrotando os omíadas, e dando início a um governo onde árabes e não árabes adquiriram os mesmos direitos, um período de paz com o nome de dinastia abássida que perdurou até o ano de 1258.

Esse período, Idade de ouro islâmica, também conhecida como Renascimento islâmico se estendeu do século VIII ao XIV, o astrofísico Neil deGrasse Tyson na série Cosmos define-a como sendo:  “a era dourada da ciência no mundo islâmico, um mundo que ia de Córdoba na Espanha até Samarkan na Ásia Central e onde sábios cristãos e judeus eram convidados de honra nos institutos de pesquisa de Bagdá, Cairo e outras capitais islâmicas; em vez de queimar livros os Califas enviavam emissários pelo mundo afora em busca de livros.

Os Califas financiaram projetos de tradução, estudo e preservação de livros para as futuras gerações; muito da luz que veio da ciência dos gregos antigos teria sido extinta sem os seus esforços, o novo despertar da ciência que ocorreu na Europa centenas de anos depois, foi alimentado por uma chama que fora cuidada há muito tempo por eruditos e cientistas islâmicos, os árabes também importaram ideias da Índia para o ocidente, incluindo os assim chamados numerais arábicos que usamos até hoje e o conceito de zero […] a astronomia árabe foi tão influente que ainda chamamos a maioria das estrelas brilhantes por seus nomes árabes e a partícula AL em palavras como álgebra, algoritmo, alquimia e álcool, por exemplo é apenas um dos traços que ficaram da época em que o Árabe era o idioma da ciência…”

Neil deGrasse Tyson – Astrofísico que ‘herdou’ a série Cosmo iniciada pelo Astrobiólogo Carl Sagan. (Img. Internet)

Também a partir do século VIII a cidade de Bagdá (Capital do Iraque bombardeada pelos USA durante o governo Bush Jr.) tornou-se um importante centro de difusão do conhecimento e da religião islâmica, onde se encontrava a Casa da Sabedoria, conjunto de museus e bibliotecas que recebia cientistas, escritores, pensadores, matemáticos e outros estudiosos interessados em entrar em contato com a grande variedade de obras de seu acervo.

Textos clássicos da Antiguidade, originariamente escritos em grego, latim, persa, hindu, foram traduzidos para o árabe em Bagdá. Grande parte desses textos sobreviveu ao tempo graças a essas traduções. Além de suas bibliotecas, Bagdá contava ainda com observatórios astronômicos para a pesquisa de estudiosos vindos de todas as regiões […] eles estudavam a posição dos astros e aperfeiçoaram o astrolábio, instrumento usado para medir a altura do Sol e de outras estrelas. (SERIACOPI, 2018, p. 58)

Esse instrumento foi posteriormente adaptado pelos portugueses para a navegação, com a criação do astrolábio náutico, o que contribuiu técnica e cientificamente para a expansão marítima europeia entre os séculos XVI e XVIII.

Ainda em Bagdá, o matemático persa, Al-Khwarizmi estudando livros vindos da Índia, entrou em contato com o sistema de numeração decimal desenvolvido pelos indianos desde o século VI. Al-Khwarizmi escreveu uma obra detalhando como era esse sistema e substituiu os antigos símbolos hindus pelos números que conhecemos hoje: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 0. Esses números ficaram conhecidos como algarismos indo-arábicos. A palavra algarismo tem sua origem no nome desse matemático árabe. (SERIACOPI, 2018, p. 59)

Sobre o apreço dos muçulmanos pela ciência e pela difusão e preservação do conhecimento o professor e matemático Georges Ifrah nos elucida,  numa etapa inicial do Islã havia uma ciência grega, uma ciência persa, uma ciência indiana, uma ciência chinesa etc. […] antes do Islã, não existia, como atualmente, uma ciência universal que perseguisse deu desígnio, acima das contingências de todas as naturezas e além de todas as fronteiras. […] nenhuma civilização preocupou-se, até então, em provocar um movimento de internacionalização da Ciência, menos ainda de inscrevê-la num movimento de pesquisa unificado. Foi necessário esperar a ação dos sábios arábico-muçulmanos para demonstrar ao mundo que a Ciência pertence a todos os povos e que é acessível a todos os indivíduos. (1997, p. 337)

Esse ímpeto pela busca e a universalização do conhecimento se materializou na criação da primeira universidade do mundo, reconhecida pela UNESCO, a Universidade de Al-Karaouine em Fez no Marrocos, fundada no ano de 859 por Fátima Al-Fihri; a segunda universidade do mundo a Universidade de Al-Azhar foi criada em 970, durante o Califado Fatímida, no Cairo; ambas existentes até a atualidade.

Os fundamentos da Ciência Moderna, ou Método Científico, que articulam o método de observação e experimentação tem como precursor o sábio Abu Ali al-Ḥasan Ibn al-Haytham al-Baṣri (965-1040), conhecido como Alhazen e nascido em Basra; de acordo com o professor emérito de física Ansari, na física ele foi um precursor de Galileo, antecipando-o em quase cinco séculos, […] esse brilhante pensador árabe, do século X ao XI, trouxe significantes contribuições para os princípios da ótica, astronomia e matemática; além disso, desenvolveu sua própria metodologia: a experimentação como um meio de provar uma hipótese ou premissa.

Alhazen criou a câmara escura, para um experimento onde comprovou que a luz viaja em linha reta, o princípio desse experimento é o mesmo que séculos mais tarde foi usado para a invenção da máquina fotográfica e para entender o funcionamento dos nossos olhos.

Na medicina (Cotrim, 2012, p. 226)  médicos como Avicena ou Ibn Sina (980-1037) e Averroes ou Ibn Ruchd (1126-1198) descobriram novas técnicas de cirurgias, bem como as causas e as formas de contágio de doenças como a varíola, a tuberculose e o sarampo. Preocuparam-se ainda com doenças infantis e mentais, além de anatomia e higiene.

No mundo muçulmano foi criado o conceito de hospital como local para o tratamento de doentes e para a prática e o ensino da medicina. O livro de Avicena, O cânone da medicina publicado no século XI, reuniu todo o conhecimento médico e farmacológico da época e foi utilizado como obra de referência até o século XVIII; (FERNANDES. 2018. p. 201) “os árabes também desenvolveram instrumentos cirúrgicos e estudos sobre a anatomia e a fisiologia humanas, sobretudo o corpo feminino, a anestesia e o sistema nervoso óptico”.

Na química as pesquisas realizadas pelos árabes resultaram na descoberta de substâncias como o salitre e o álcool.  Criaram a água de rosas, utilizada em cosméticos e na culinária, o sabão e o vinagre. O químico persa Jabir Ibn Hayyan, nascido em 721, é considerado o precursor da química moderna e foi o primeiro cientista a descrever a preparação do ácido nítrico, sendo-lhe atribuída também a descoberta do ácido sulfúrico, da água-régia e do nitrato de prata.

Na literatura, a escrita árabe (muito valorizada na cultura islâmica já que o Alcorão, um dos fundamentos do Islã, foi escrito em árabe) se aprimorou no mundo islâmico e a obra literária em árabe mais difundida é As mil e uma noites que coleciona histórias tradicionais persas, indianas e árabes; e as mais famosas são “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, “As Sete Viagens de Simbad” e “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”.

a CULTURA ISLÂMICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
  Abu Dhabi – Mesquita Sheikh Zayed. (Fotos: Dilson Dinis Tavares)

Além das contribuições científicas, com a expansão islâmica o comércio também se ampliou, as rotas comerciais terrestres e marítimas uniam territórios da Índia à Espanha, passando pelo norte da África e pelo mar Mediterrâneo, (Cotrim, 2012, p. 222) “os árabes criaram diversos recursos usados até hoje na realização dos negócios: cheques, letras de câmbio, recibos e sociedades comerciais”.

Essa união de territórios, impulsionada pelo comércio, permitiu uma intensa troca cultural: a bússola, o papel e a pólvora, inventados pelos chineses, foram levados para o Ocidente pelos árabes. Eles também difundiram entre os europeus o cultivo da cana-de-açúcar, do algodão, do arroz, do café, do limão e da laranja, aprendido através do contato com outros povos. (CALAINHO. 2018. p.187)

No período em que ocuparam a península ibérica os mouros, povo berbere originário do norte da África que foi convertido ao Islã, também influenciaram muito a cultura, (Pellegrini, 2016, p. 178) “alguns pensadores islâmicos que viviam em Al-Andalus tiveram grande reconhecimento no Ocidente pela importância de suas contribuições, em áreas como Medicina, Literatura, Ciência e Filosofia.”

O nosso cotidiano está permeado pela influência islâmica que nos chegou indiretamente, via colonização européia, pois,  foram os árabes que introduziram na Europa […] o xadrez, e a própria arte caligráfica, pois encaravam a palavra escrita como o meio por excelência da revelação divina. Na culinária, difundiram o uso do café, de doces próprios e produtos de pastelaria, do azeite, em substituição à proibida gordura de porco, e de muitos outros temperos, como o açafrão, a noz-moscada, o cravo, a canela e pimentas.

Até mesmo o bom costume da limpeza pessoal, que muitos atribuem somente aos indígenas, deve um tributo aos árabes. […] o adufe, precursor do pandeiro. A aridez dos solos desérticos capacitou-os como mestres nas técnicas agrícolas e de irrigação, importando para a Europa o moinho d’água, avô do engenho colonial, e lá semeando o algodão, a laranjeira, a criação do bicho-de-seda, o cultivo de arroz e da tão “brasileira” cana-de-açúcar. As próprias técnicas construtivas, como a telha de barro do tipo capa e canal, ou ainda a taipa de pilão, tão dominante nos primeiros séculos de Brasil, são de influência nitidamente árabe. (TRUZZI. 2009. p.19-21)

Outras marcas deixadas em nossa cultura incluem técnicas de construção como a taipa de pilão, largamente utilizada na arquitetura colonial brasileira […] arcos em forma de ferradura, cúpulas em forma de gota e os mosaicos de azulejo também são elementos introduzidos por esses povos do Oriente Médio. O cavaquinho brasileiro é um descendente do alaúde, que em árabe significa a madeira. Ritmos árabes estão presentes no coco, dança tradicional do Norte e Nordeste brasileiros, no baião e nos repentes nordestinos, cuja versão árabe é o zajal, também um desafio poético baseado no improviso. (MURIUZZO. 2011. p. 58)

 Cavaquinho e o seu ‘avô’ Alaúde. (Fotos Internet).

A influência da cultura islâmica na língua portuguesa e espanhola ocorreu nos oito séculos da presença muçulmana na península ibérica e no intercâmbio cultural ocorrido nesse período, essa penetração tem início no século VIII, nesse momento a língua árabe já se encontra plenamente desenvolvida e é o idioma tanto da religião islâmica quanto da civilização islâmica que se estendia do Golfo Pérsico até o oceano Atlântico.

Com o estreitamento dos laços entre os muçulmanos e os ibéricos há a mútua influência do idioma árabe e das línguas de origem latina, conforme Kemnitz (1991, p.35), o meio bilíngue é extremamente receptivo às interações linguísticas o que se reflete sobretudo no vocabulário e, em certa medida, na sintaxe. Assim, se por um lado assistimos a certas modificações do dialeto árabe do Andaluz, por outro verificamos que se produz nos falares românicos desta região um processo semelhante.

As influências do árabe se caracterizam principalmente pelos empréstimos linguísticos que enriqueceram o vocabulário da língua portuguesa e que ocorreram principalmente durante a ocupação islâmica mas também na época da expansão marítima quando os portugueses novamente tiveram contato com o mundo árabe-islâmico a língua árabe exerceu uma influência muito forte nas línguas portuguesa e espanhola.

Assim, muitas palavras de origem árabe foram incorporadas ao nosso vocabulário. Algumas são identificáveis pela partícula “al”, como alambique, álcool, alface, alfaiate, alfândega, álgebra, algodão, almofada, ou com variações, como açougue, açúcar, arroz, azeite e azeitona. Outras palavras não começam com o artigo, mas derivam do árabe, como café, fulano, gazela, jarra, xadrez e xerife. (FERNANDES. 2018. p. 201)

Os empréstimos linguísticos são constituídos principalmente de substantivos que designam coisas e conceitos, muitos desses substantivos passaram a língua portuguesa junto com o artigo definido árabe “al” como em alaúde (عُود – Al-aud), alazão (حصان Al-hissan), alcachofra (خَراشِيف Al-kharaachiif), alcaparra (كبَّار – Al-cabaar), aldeia (ضَيْعَة – Adaia), alface (خَسّ – Al-khas), alfaiate (خَيّاط – Al-khaiat), algebra (جبر – Al-jabir), alquimia (خيمياء – Al-khimia) e álcool (كُحُول – Al-kuhul); esses e muitos outros totalizam aproximadamente 700 vocábulos de origem árabe no vocabulário português.

Ainda relacionado à influência lexicográfica na língua portuguesa.

Em sua permanência de quase oito séculos na península Ibérica, os árabes contribuíram com centenas de vocábulos para o léxico da língua portuguesa, ainda durante seu período de formação […] do total de cerca de três mil palavras do português primitivo, no mínimo 800 tem origem árabe […] “Al” é o artigo definido em árabe – independentemente do gênero e do número. Com frequência, os portugueses o incorporavam às palavras que ouviam, sem compreender que se tratava do artigo. Ao compararmos a palavra “al-godão” com cottom, em inglês, coton, em francês, ou cotone, em italiano, isso fica claro.

O mesmo se verifica quando comparamos a palavra “ar-roz” com rice, em inglês, riz, em francês, ou riso, em italiano. A única diferença é que, por uma questão fonética, ocorre uma assimilação – como acontece no caso das letras ditas solares. Assim, não se fala al-ruzz em árabe, mas ar-ruzz (daí “arroz”). Na passagem do árabe para o português, é comum encontrar redirecionamentos semânticos – ou seja, palavras cujo sentido sofreu algum tipo de alteração. É o caso de “acepipe” (petisco), que originalmente (az-zebib ou az-zabib) designava “passa de uva”, bastante apreciada nas regiões árabes […]. A palavra “arrecife” (ou recife) foi outra que ganhou novo sentido em português; seu ancestral árabe ar-rasif quer dizer “estrada pavimentada com rochedos”. (Farah. 2009. p.28)

Além do vocabulário, o sistema de nomes de dias da semana é uma fiel cópia do modelo árabe […] começando por domingo – yaum al-ahad dia primeiro, seguindo-se na tradução literal dia segundo, dia terceiro etc […] na língua portuguesa o termo ‘dia’ é substituído pela palavra ‘feira’, no seu significado antigo de dia de feira, precedida pelo numeral ordinário (Kemnitz,1991, p.40).

[N.E.As feiras eram encontros comerciais que ocorriam no medievo europeu, eram mais concorridas, como muitos produtos e vendedores e compradores, nos períodos de primavera e do verão].

Assim nós temos a mesma estrutura na língua portuguesa: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira e quinta-feira. Outro exemplo de empréstimo linguístico é a expressão “se Deus quiser” que é uma tradução literal da expressão árabe “in sha Allah” (إن شاء الله) e uma maneira comum de receber uma pessoa em casa entre os Árabes e entre nós é a frase “baiti baituk” – “a casa é sua”.

Muitos nomes próprios da nossa língua tem origem Árabe como: Fátima, Almeida (Al-maida مائدة – mesa), Almodovar (Al-mudauar مدوّر – redondo), Alcântara (Al-kantara قَنْطَرَة – ponte) etc. Até mesmo na esfera política, há influência cultural ocorre, pois, foi no Brasil que  “muçulmanos organizaram o principal levante urbano contra a escravidão na América do Sul – a Revolta dos Malês, em 1835”. (Cotrim, 2018, p. 235).

A revolta aconteceu na cidade de Salvador, onde a maioria da população era composta de escravizados,  a expressão malê vem de imalê, que na língua iorubá significa muçulmano. Portanto, os malês eram especificamente os muçulmanos de língua iorubá, conhecidos como nagôs na Bahia. Outros grupos, até mais islamizados como os haussás, também participaram, porém contribuindo com muito menor número de rebeldes (REIS, 2015, p.3).

[N.E. A história registra que os escravos negros muçulmanos negociados no Brasil eram os mais caros e apreciados, porque, além de serem letrados, tinham hábitos e costumes higiênicos, culinários, culturais muito mais avançados do que os de seus senhores portugueses.]

Em vista do que foi exposto, com vasta literatura e estudos feitos, é notória a contribuição cultural, científica, linguística e artística dos muçulmano, e reconhecer essa contribuição é fundamental para os estudantes da educação básica compreenderem a sociedade em que estão inseridos.

Alguns procedimentos e metodologias para a criação deste artigo

A palavra metodologia significa o caminho para se chegar a um fim, e o caminho escolhido para embasar nosso trabalho foi a pesquisa científica apoiada na  concepção de que a Ciência é um procedimento metódico cujo objetivo é conhecer, interpretar e intervir na realidade, tendo como diretriz problemas formulados que sustentam regras e ações adequadas à constituição do conhecimento. (GERHARDT, 2009, p.25)

A abordagem da pesquisa é a qualitativa que não se preocupa com a representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão da realidade e da sociedade, “a pesquisa qualitativa preocupa-se, portanto, com aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais.” (Gerhardt, 2009, p.32).

Quanto aos objetivos, a pesquisa se caracteriza por ser explicativa, pois, preocupa-se em identificar os fatores que determinam ou que contribuem para a ocorrência dos fenômenos sociais associados a cultura. O procedimento escolhido foi a pesquisa bibliográfica que é “feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites.” (Gerhardt, 2009, p.37).

Os dois fios condutores da pesquisa foram o conceito de interculturalismo e o legado cultural islâmico presente no nosso cotidiano.

Considerações finais.

São notórias as contribuições dos muçulmanos para o conhecimento humano, nosso idioma e a cultura universal; a consciência dessas contribuições é essencial para a compreensão do mundo atual, onde há um intenso intercâmbio de culturas e onde há mais de 1,8 bilhões de adeptos da religião islâmica, principalmente na Ásia: Indonésia, Índia, Paquistão e Bangladesh; e na África: Egito, Nigéria, Marrocos e Argélia; o que evidencia a importância do islamismo para a compreensão da contemporaneidade.

Assim se justifica a inclusão desses conteúdos no currículo da educação básica, pois, permite a interação dialógico-crítica dos estudantes com a complexidade do mundo, favorecendo o diálogo intercultural, o respeito às diferenças, à pluralidade étnica e pluralidade linguística; todos muito importantes para o exercício da cidadania. Ou seja, a harmonia na diferença como bem elucida a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

Daniel Castro de Andrade (Sayed Daniel) – Graduado em Música e licenciado pela Universidade Federal de Pernambuco (2006); Especialista em Educação de Jovens e Adultos pela Faculdade de Educação da USP (2008); Professor de Ensino Fundamental II – Arte – na EMEF Dom Pedro I.

 

 

Referências
ANSARI, Shaikh Mohammad Razaullah. Ibn al-Haytham’s scientific method. UNESCO, 2015. Disponível em: https://en.unesco.org/courier/news-views-online/ibn-al-haytham-s-scientific-method.  Acesso em: 3 de julho de 2019

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Brasília: MEC. 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso 7 de julho de 2019.

CALAINHO, D. B.; FERREIRA, J.; FARIA, S. de C. História.doc. São Paulo: Saraiva, 2018. CANDAU, Vera Maria Ferrão. Diferenças culturais, interculturalidade e educação em direitos humanos.

Educação e Sociedade [online]. 2012, vol.33, n.118, pp.235-250. ISSN 0101-7330.  
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302012000100015. Acesso em: 2 de julho de 2019.

COSMOS: Uma Odisseia do Espaço-Tempo. Direção: Brannon Braga, Ann Druyan. 
Fox, 2014. 4 BLU RAY (553 min), NTSC, color. Título original: Cosmos: A Spacetime Odyssey.

COMITÊ CIENTIFICO INTERNACIONAL DA UNESCO. História geral da África, III: 
África do século VII ao XI / editado por Mohammed El Fasi. Brasília : UNESCO, 2010.

COTRIM, Gilberto. Saber e fazer história. São Paulo: Saraiva, 2012.

FARAH, Daniel. Alicerces, recifes e acepipes. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: 
Biblioteca Nacional, n.46, jul. 2009

FERNANDES, Ana Claudia. Araribá mais: história. São Paulo: Moderna, 2018.

GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (org.). Métodos de pesquisa. Porto Alegre:  Editora da UFRGS, 2009. 
Disponível em:  https://books.google.com.br/books/about/M%C3%A9todos_de_Pesquisa.html?
id=dRuzRyEIzmkC&printsec=frontcover&source=kp_read_button&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false. 
Acesso em: 10 set. 2019. 

HOURANI, Albert Habib. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

IFRAH, Georges. História universal dos algarismos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

KEMNITZ, Eva-Maria Von. Influência do Árabe na Língua Portuguesa. 
Revista Internacional de Língua Portuguesa. Lisboa, n.5 e 6 p. 34-44, dez., 1991.

MARIUZZO, Patrícia. Riqueza cultural e capacidade de adaptação são suas marcas. 
Cienc. Cult., São Paulo, v.63, n. 3, p.58-59, jul. 2011. 
Disponível em: 
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252011000300022&lng=pt&tlng=pt. 
Acesso em: 3 de junho de 2019.

PELLEGRINI, Marco César. #Contato História. São Paulo: Quinteto Editorial, 2016.

REIS, João José. A Revolta dos Malês em 1835. Disponível em: 
www.educacao.salvador.ba.gov.br/adm/wp-content/uploads/2015/05/a-revolta-dos-males.pdf. 
Acesso em: 3 de junho de 2019.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Carta às Esquerdas (24/8/2011). Carta Maior.

Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5169. 
Acesso em: 3 de julho de 2019.

SERIACOPI, Gislane Campos Azevedo. Inspire história. São Paulo: FTD, 2018.

TRADUÇÃO do sentido do Nobre Alcorão. Tradução: Helmi Nasr. Medina: Complexo de impressão do rei Fahd, 2004. 

TRUZZI, Oswaldo. Verde, amarelo, azul e mouro. Revista de História da Biblioteca Nacional. 
Rio de Janeiro: Sabin, ano 4, n. 46, jul. 2009. p.19-21

UNESCO. Declaração de princípios sobre a tolerância. 1995. 
Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000131524. Acesso em: 1 de julho de 2019

 

Compartilhar

Redação

ÆscolaLegal é um esforço coletivo de profissionais interessados em resgatar princípios básicos da Educação e traduzir informações sobre o universo multi e transdisciplinar que a envolve, com foco crescente em Educação 4.0 e além, Tecnologia/Inovação, Sustentabilidade, Ciências e Cultura Sistêmica. Publisher: Volmer Silva do Rêgo - MTb16640-85 SP - ABI 2264/SP

2 thoughts on “Cultura Islâmica na Educação Básica

  • Eusiel Rego

    Muito bom Daniel! …”A tolerância é a harmonia na diferença” – é a praxis controlada, na humanidade atual, do UM e do Múltiplo. Harmonia(s)!

    • Para Aristóteles (a quem os árabes souberam guardar e aproveitar) a moderação ou o equilíbrio é a capacidade de medir com justiça as “distâncias” entre dois opostos, o que confere ao homem a possibilidade (e aí entram outras considerações) de sentir-se bem a partir das decisões a serem tomadas sobre esta base racional. Assim era com E. Kant, contra o que se opôs, em certa medida D. Hume, a partir da consideração que instinto, desejo estavam tão imbricadas no ser humano que o comando racional ficava, não raras vezes, em segundo plano. Eis que Hegel afirma que o estômago deve antes estar saciado, senão razão não subsiste ao ataque das necessidades biológicas. Então, podemos imaginar que Kant tinha o ser humano em um patamar de excelência ético-moral e em que todas as suas necessidades estivessem satisfeitas. E que Hume, por sua vez, deveria estar observando o ser humano fora destas circunstâncias, ao tê-lo e descrito e visto movido pelas paixões (ou desvios de ordem psicoemocional) mais do que pela razão. Mas, será que todos pensavam no aspecto punitivo (só o freio social – legal – a aplicação da justiça – Tikè (a divina para os gregos) e das leis aprovadas pela maioria em um contrato social (T.Hobbes, J.Locke, JJ.Rousseau, Montesquieu de La Brede, e outros contratualistas) poderiam submetê-los a um controle? Assim imaginamos que das virtudes iniciais e éticas (as 4 cardiais vistas em Platão – ou das 9 descritas pelo grande discípulo) ainda que acrescidas das 3 teologais (igreja do neoplatonismo medieval) não lograram êxito no controle da bestialidade humana (e penso que esta pode sempre ser acionada, de seu repositório interior nos recônditos da psiquè humana, por interesses de uns em detrimento de outros) – ferramenta para a manutenção do status quo (quem o quer, de fato?), o que nos leva a necessidade da introdução de mais uma ‘virtude’ a tal da tolerância – Mas, como tolerar o inimigo que não respeita regras nem aceita o conjunto de virtudes que, em tese, deveriam emoldurar e dar suporte à conduta humana? A violência é ferramenta para uma verdadeira mudança?

Fechado para comentários.