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“Eu odeio essa matéria – Matemática!”

 “Eu odeio essa matéria -, Matemática!”  Não é incomum ouvirmos isto de grande parte dos alunos. A razão é simples – professores precisam entender e dispor de métodos de ensino que além de desafiar os alunos deixa a situação prazeirosa e até lúdica.

Silvio Perticarati

São Paulo, 20/03 de 2020.

2 Minutos


Minha esposa e eu ficamos apreensivos. Até então, Aline nunca tivera problemas com Matemática e até gostava dos conteúdos estudados. O que teria havido de tão grave para que ela mudasse repentinamente de opinião?

Decidimos realizar uma investigação, tomando cuidado para não a pressionarmos demais. A estratégia era nos colocarmos ao seu lado, oferecer apoio e incentivá-la a contar suas razões. Depois disso, faríamos uma visita à escola para descobrir o que estava acontecendo nas aulas de Matemática.

A conversa com nossa filha foi tranquila; fizemos perguntas periféricas sobre o ambiente, os colegas, a sala de aula, o material, as avaliações… Depois aprofundamos um pouco mais, pedindo que nos falasse sobre a professora, as aulas, as tarefas e os conteúdos. Não obtivemos nenhuma pista consistente que justificasse a sua repulsa com a matéria.

Então fomos direto ao ponto: “Mas filha, por que então você odeia Matemática?” Ela nos encarou com seriedade, como se a resposta fosse óbvia e apenas nós não a conhecêssemos. Depois de alguns segundos, revelou o segredo que assombra a humanidade há séculos: “Porque todo mundo odeia Matemática”.

Ficamos em silêncio alguns instantes, em respeito à dolorosa descoberta da nossa filha, enquanto trocávamos alguns olhares e sorrisos de cumplicidade. Depois de a tranquilizarmos, prometemos que iríamos ajudá-la a superar sua primeira crise existencial e que tudo voltaria ao normal.

O Ponto de Ruptura

Quem já teve oportunidade de interagir com alunos das séries iniciais (Pré-escola e Fundamental 1) e perguntar sobre suas matérias preferidas, sabe que a Matemática é uma das campeãs.

Nessa fase, os conteúdos são apresentados e trabalhados de maneira concreta, inseridos na vida das crianças. As professoras sentem confiança e motivação para transferir os conceitos, planejam aulas criativas e atividades desafiadoras. Incentivam os alunos a buscarem respostas e tirarem suas próprias conclusões.

É comum utilizarem comidas (pizzas, salada de frutas, chocolates), visitas ao supermercado, desafios lógicos e matemáticos, jogos de raciocínio entre outros. E desta forma natural e prazerosa, eles aprendem as operações aritméticas básicas, os conceitos de fração, as primeiras noções de conjuntos, geometria básica e muito mais. Participam das aulas, fazem as tarefas, são bem avaliados e sentem-se realmente capazes para lidar com a Matemática.

Muitas escolas particulares têm cozinhas experimentais, laboratórios, sala de música, hortas, quadra e biblioteca. A interdisciplinaridade está sempre presente, favorecendo a inserção dos conteúdos na vida quotidiana das crianças. Desta forma, a Matemática encontra um terreno fértil e ricas possibilidades para interagir com as mentes curiosas dos pequenos alunos.

É sabido que existe uma relação direta entre a formação dos professores e o entusiasmo com que os alunos irão absorver os conteúdos. Quanto mais os professores forem capacitados para transmitirem determinado conhecimento, mais seguros e confiantes serão durante as aulas.

Terão uma grande coleção de exemplos, diversas formas de abordar cada assunto, saberão identificar os pontos que geram mais dúvidas nos alunos, farão a preparação das suas aulas com maior riqueza e criatividade. As crianças se apaixonarão pela matéria, e o aprendizado será facilitado pelas emoções positivas e se fixará mais facilmente.

Alunos e professores: complementares

Porém, quando os alunos passam para o Fundamental 2, as coisas mudam bastante. A partir do quinto ano, a Matemática vai aos poucos tornando-se mais abstrata e menos concreta. Ah, o maldito “x” e seus cúmplices: as variáveis, os termos, as incógnitas, os teoremas.

Surgem expressões enormes sem aplicação na vida real; tem a regra dos sinais, os parênteses e colchetes. Para não falar da divisibilidade, dos mínimos múltiplos e máximos divisores. E aqueles problemas sem pé nem cabeça, com enunciados estranhos?

E o pior é que, para compensar a dificuldade dos alunos em compreender e assimilar tudo aquilo, são obrigados a resolver listas intermináveis de exercícios repetitivos, desmotivadores, assombrados e odiados tanto pelos alunos quanto pelos seus pais.

Sem contar os pontos negativos distribuídos aos que não fazem as tarefas, aos que não copiam da lousa, aos que conversam ou dormem, porque tudo aquilo não faz o menor sentido nas suas vidas.

Conteúdos abstratos sendo empurrados, goela abaixo, sem a menor preocupação com o bem estar dos alunos ou a aprendizagem efetiva. Valoriza-se a automação em detrimento da compreensão. Esquece-se que a parte mais importante de qualquer aprendizagem é o prazer, a degustação, a vontade de querer mais.

Alguns alunos diriam: “Ninguém merece !”. O mestre Ruben Alves chamou atenção para a origem do termo “saber”, que deriva de “sabor”. Diante disso, é natural que a Matemática seja uma das matérias mais odiadas a partir do quinto ano. Uma pena, pois o que era tão gostoso, passa a ser um sofrimento. Esse é o ponto de ruptura.

As causas

Os cursos de Magistério e Pedagogia não priorizam a Matemática tanto quanto a Língua Portuguesa. A começar pela seleção dos candidatos, que deveriam ter uma base sólida de conhecimentos e habilidades, sobre a qual depositariam a sua formação superior.

Porém, a maioria dos que ingressam nessa área, o fazem justamente porque não gostam ou apresentam dificuldades com a Matemática. Sentem insegurança e até medo. Sua preferência é pela área das ciências humanas.

Os futuros professores das séries iniciais devem ser preparados de forma a possuírem fundamentação conceitual, habilidades para cálculos básicos e resolução de problemas, didática e pedagogia específicas, além de alto grau de motivação e confiança.

Esta bagagem matemática, que seria sua grande aliada na preparação de aulas memoráveis, potencializaria o aprendizado dos alunos. Estamos falando da alfabetização matemática, que deve receber a mesma atenção que é dada à alfabetização em Língua Portuguesa. Infelizmente, não é isso o que acontece. Há mais de dez anos venho ministrando cursos e palestras voltados para a capacitação de professores na área da Matemática.

Com temas interessantes e inspiradores, alegro-me ao ver as plateias alegres e motivadas, em busca de novas tendências e técnicas pedagógicas. Porém, com o desenrolar das aulas, verifico que a maioria apresenta dificuldades para lidar com os conteúdos básicos e resolver desafios lógicos de pequena dificuldade.

Seu comportamento vai mudando aos poucos. Deixam de participar e de se divertir. Tentam ficar invisíveis. Ao final da apresentação, grupos se formam à minha volta para compartilhar suas limitações e pedir conselhos.

A fase crítica

O quinto e o sexto anos, sendo séries de transição, exigem cuidados especiais na formação matemática das crianças. Nessa etapa da sua vida acadêmica, espera-se que eles estejam alfabetizados matematicamente, assim como estão em língua portuguesa.

Ou seja, compreender e saber expressar-se na linguagem matemática, interpretar os diversos sinais e símbolos matemáticos, lidar com o enunciado de problemas matemáticos e traduzi-los em números e cálculos.

Além disso, não basta serem alfabetizados. É necessário que tenham fluência matemática, ou seja, devem conseguir fazer determinados cálculos de cabeça, ter raciocínio lógico e matemático compatível com a sua idade, interpretar gráficos, ter noções de sistemas de medida e conceitos geométricos, entre outras.

A Matemática é uma linguagem que traduz e interpreta os fatos da natureza. Através de fórmulas, expressões, gráficos e diagramas, torna possível compreender e justificar inúmeros fenômenos. Está presente em todos os momentos das nossas vidas. Como linguagem, apresenta símbolos e sinais, regras e fundamentos. Exige uma sequência lógica e raciocínio correto, além de precisão nos cálculos.

Ser fluente significa comunicar-se corretamente, em um ritmo aceitável, sem a necessidade de interrupções frequentes. A fluência, em qualquer linguagem, se obtém através da imersão e da prática. Os nossos alunos, em geral, tornam-se fluentes em Língua Portuguesa antes de completarem dez anos de idade. Mas poucos conseguem fluência em Matemática no mesmo prazo.

Nesta fase escolar não pode haver bloqueios psicológicos, resistência, recusa ou memórias negativas. Ao contrário, é esperado que os alunos apresentem atitude mental positiva, considerando a Matemática uma parte importante das suas vidas, e presente na maioria das atividades humanas. A atuação dos professores é decisiva para que isso ocorra.

Confiança gera confiança, alegria gera alegria, motivação gera motivação. Infelizmente, o contrário também é verdadeiro. Este é o ponto central do nosso dilema.

Justamente quando a Matemática torna-se abstrata, exigindo compreensão e interpretação dos enunciados, além da habilidade em usar as ferramentas corretas com rapidez e precisão; quando os alunos mais precisam de suporte e encorajamento, deparam-se com professores relativamente despreparados e inseguros.

“Eu odeio esta matéria – Matemática!” (Foto: Unsplash)

Considerando esse cenário, é natural que as crianças tenham dificuldades e não gostem da Matemática. Ela foi transformada em um monstro que as assombra diariamente. Mas não cabe aos professores a culpa ou a responsabilidade pela situação apresentada.

Afinal, não foram capacitados para transmitirem os conteúdos de forma natural e vivenciada, transportando seus pupilos pelos caminhos da imaginação e do raciocínio, das conquistas e das descobertas.

Afirmo que é possível planejar e oferecer aulas encantadoras de Matemática também aos alunos do Fundamental 2 e do Ensino Médio. Aulas em que a classe se envolve completamente e parte em busca do próprio conhecimento. Em que os enigmas e problemas apresentados se transformam em territórios e troféus a serem conquistados.

Onde tenham liberdade para tentar soluções não convencionais, interagindo uns com os outros numa simbiose altamente produtiva.

E não digam os pessimistas de plantão, e também os hiper-realistas, que isso somente é possível com altos salários e recursos pedagógicos modernos. A realidade mostra que o grande diferencial da educação excelente ainda é o professor capacitado, motivado e comprometido. É ele que encanta, que transforma alunos comuns em gênios, que os estimula, que os convida e os desafia à auto superação e às grandes escaladas.

O destino da Aline

Alguns leitores podem estar curiosos sobre o desenrolar da história contada na abertura deste artigo. “O que aconteceu com Aline?”
Bem, a minha filha terminou os estudos no Ensino Médio sem grandes amores pela Matemática.

Fez o suficiente para passar, nada mais. Como seu pai e matemático, disse-lhe algumas vezes: “Você não gosta, porque ela não faz parte da sua vida, do seu mundo. Não conseguiram te ensinar os conteúdos de forma que fizessem sentido para você.”

Minha filha é uma das milhares de vítimas do nosso sistema educacional completamente confuso e ineficaz. A maioria dos dirigentes e políticos que atuam na Educação jamais frequentaram uma sala de aula como professores. Alteram os currículos, as normas, os conteúdos, pensando em soluções mágicas e imediatas.

Não são capazes de antever o futuro mais próximo. Mas isso é assunto para outra conversa…

Aline formou-se Educadora Física e se apaixonou pela profissão. Nunca parou de pesquisar e estudar. Um dia, ela me telefonou para dizer que estava adorando Estatística. Uma bela surpresa para mim!

Contou que fazia um trabalho de acompanhamento de crianças em creches municipais, avaliando dados fisiológicos, nutricionais e desempenho físico em atividades específicas. Tinha que lançar todos os arquivos numa planilha e usar um programa que fazia gráficos e tabelas sobre o desenvolvimento das crianças. Sentia-se segura, motivada e confiante.

Comentei: “Olha só, agora a Matemática faz sentido na sua vida, nas suas atividades. Então você está se apaixonando por ela.”
Esta é a síntese dos processos de ensino e aprendizagem: alguém somente demonstra interesse por algo que faça sentido na sua vida.

Assim aprendemos a comer, andar, nadar, namorar, trabalhar, rezar, relacionar…Se você é educador e já conduziu uma aula ou atividade que realmente fazia sentido para os alunos, certamente teve a deliciosa sensação de euforia ao ver os olhinhos brilhando, a postura de interesse, a curiosidade e a vontade de fazer, de colocar a mão na massa.

O que deve ser feito?

O ensino da Matemática necessita mudar. Um grande reforma na Educação. Ouvindo milhares de educadores, alunos, pedagogos, sociólogos, psicólogos, pais, comunidade. Sem urgência para terminar; seguindo um cronograma efetivo; verificando os resultados; controlando os erros; abrindo a mente para o que existe em outros países; alterando os currículos…

Mas sabemos que isso não acontecerá devido às colisões frontais com interesses financeiros e políticos. Não por enquanto. Então podemos desconsiderar.

O que pode ser feito?

Garantir que todas as reuniões, planejamentos, seminários, debates e capacitações, materiais didáticos, ambientes escolares, enfim, que todos os esforços e os recursos sejam direcionados para dar um sentido ao ensino da Matemática. Um sentido prático, vivenciado, inserido no contexto e na vida dos alunos.

Quando isso ocorrer, será ativado o poderoso mecanismo que modela os cidadãos autodidatas, e os alunos passarão a ser mestres e guardiães do próprio conhecimento.

Então, teremos alcançado a plena alfabetização e fluência matemáticas. E os alunos não mais terão motivos para odiar essa matéria.

Silvio Perticarati – Professor de Matemática

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Redação

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