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BR-319 Ameaça Floresta Amazônica

Violações ambientais e de direitos humanos podem ter sido cometidas como resultado de um dos mais gigantescos e ambiciosos projetos de infraestrutura da floresta amazônica, a reconstrução da rodovia BR-319, trecho de 830 km, ligando o “arco do desmatamento” no sul da Amazônia à capital, Manaus.

Monica Piccinini

Londres, 14/10/2022.

5 Minutos.

Há muitos apoiadores nacionais e internacionais e financiadores com interesses ocultos por trás da reconstrução deste extenso projeto rodoviário, incluindo uma empresa estatal russa de petróleo e gás, uma empresa de bioenergia, “ruralistas” (grandes proprietários de terras e seus representantes), mineradores ilegais e madeireiros, investidores, políticos, o governo e muito mais. Sua motivação é impulsionada pelo lucro e poder, não importa quanto custe.

A floresta amazônica desempenha um papel fundamental no controle das chuvas da América do Sul e do clima global. Além disso, a floresta tropical abriga um terço da biodiversidade mundial e uma grande variedade de povos indígenas.

A floresta tropical perdeu mais de 830.000 km², correspondendo a 21% da floresta e cerca de 17% já está degradada.

De acordo com Carlos Nobre, renomado cientista do sistema terrestre, a floresta amazônica, um dos lugares mais biodiversos do planeta, está à beira do precipício, mostrando sinais claros de destruição e perigosamente perto de um ponto de inflexão de colapso irreversível, desencadeado pelo desmatamento, degradação, incêndios florestais, exploração madeireira, pecuária ilegal, mineração e desenvolvimentos de petróleo e gás.

A BR-319 liga Manaus, na Amazônia Central, a Porto Velho, no “arco do desmatamento”, na borda sul da floresta. A rodovia é um caminho livre para estradas laterais ilegais em áreas de grande concentração de terras indígenas, reservas legais e unidades de conservação, dando a garimpeiros ilegais, madeireiros, posseiros e grileiros de terras acesso a floresta intocada.

BR-319 Ameaça Floresta Amazônica
O arco do desmatamento cresce e preocupa. Brasil perde. (Img. Web)

Como consequência, esses invasores estão trazendo uma onda de destruição, instabilidade, poluição, violência, doenças, decadência e morte para as comunidades e o meio ambiente ao seu redor.

A rodovia foi inaugurada em março de 1976, durante a ditadura militar e sob o governo do general Ernesto Geisel, e abandonada em 1988. Em 2015, o governo de Dilma Roussef (Partido Trabalhista) propôs a reabertura da BR-319.

“A BR-319 corta um dos blocos mais conservados da floresta onde contém um enorme estoque de carbono.

Esse projeto é uma ameaça a 63 terras indígenas e 18 mil indígenas, sem falar no meio ambiente e na biodiversidade”, disse o ecologista e pesquisador, Lucas Ferrante, durante nossa entrevista deste mês.

Segundo Ferrante, que participou de um estudo publicado no Die Erde – Journal of the Geographic Society of Berlin, nem estudos ambientais nem consultas com povos indígenas foram realizados em alguns trechos da rodovia, conforme estabelecido pela Convenção 169 da OIT.

Ferrante publicou vários estudos acadêmicos de forma independente e em conjunto com Philip Martin Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e ganhador do Prêmio Nobel da Paz (2007), sobre os impactos que o projeto BR-319 trará para a Amazônia, meio ambiente, comunidades indígenas e o mundo.

A reconstrução da BR-319 não tem estudo de viabilidade econômica (EVTEA). Estudos independentes mostram que para cada R$1,00 gasto na rodovia, o ROI é de apenas R$0,33, mencionou Ferrante.

A principal rota de transporte utilizada sempre foi através do Rio Madeira, tornando-a uma forma mais barata e segura de transportar mercadorias. Para ele, o projeto da rodovia seria um enorme desastre social, econômico e ecológico.

Estudo publicado na Conservação Ambiental indica que o Brasil pode perder mais de US$ 1 bilhão por ano em produção agrícola se o desmatamento na Amazônia não for contido.

“Já identificamos que a floresta amazônica ultrapassou seu limite tolerado de desmatamento. Os rios voadores que abastecem as regiões sul e sudeste do Brasil já estão comprometidos, incluindo uma área do arco do desmatamento, corroborando mudanças e eventos climáticos dentro do país, afetando até mesmo o agronegócio”, disse Ferrante.

Segundo Ferrante e vários estudos, um tema adicional de grande preocupação, à medida que a exploração de terras indígenas aumenta, é o risco de novas pandemias. A floresta amazônica é considerada uma possível fonte da próxima pandemia, pois o desmatamento oferece oportunidades para agentes de doenças do grande reservatório da região de diferentes tipos de coronavírus e vários outros patógenos para saltar para a população humana.

O interior da Amazônia possui um sistema de saúde precário, tornando extremamente difícil a realização de uma nova pandemia originária da região.

Apoiantes

BR-319 Ameaça Floresta Amazônica
Empresa de Igor Sechin, 2º homem mais poderoso da Rússia. (Img. Web)

Uma empresa com muitos interesses em apoiar a reconstrução da BR-319 é a estatal russa Rosneft, uma das maiores empresas de petróleo e gás do mundo.

O CEO da Rosneft, Igor Sechin, é considerado o segundo homem mais poderoso da Rússia depois de Putin. Em fevereiro de 2022, pouco antes de a Rússia invadir a Ucrânia, Bolsonaro viajou à Rússia para se reunir com Putin para discutir uma possível parceria energética.

A rodovia BR-319 dá acesso à AM-366, rodovia estadual planejada que passa pelos primeiros blocos de perfuração do projeto “Bacia Sedimentar de Solimoes” para extração de petróleo e gás, uma área maior que o estado da Califórnia. Rosfnet comprou 16 blocos nesta área.

Trata-se de um projeto de grande preocupação, uma vez que são levantadas questões sobre quanta influência Rosneft pode ter sobre as políticas e decisões do governo sobre a reconstrução desta rodovia, bem como o impacto que ela pode ter sobre as comunidades locais e o meio ambiente.

A Millenium Bioenergia é outra forte apoiadora do projeto de reconstrução da BR-319. Empresa de bioenergia formada em 2014 por proprietários de usinas de São Paulo e produtores de grãos do Centro-Oeste, o foco inicial da empresa era a produção de biocombustíveis. No entanto, a empresa decidiu fazer parcerias com as comunidades indígenas para produzir milho, frango, peixe e suínos em um sistema confinado. Esta é a receita perfeita para desencadear novas pandemias como resultado de saltos zoonóticos devido à degradação ambiental.

Nos estados do Amazonas e Roraima, seu objetivo é produzir biocombustíveis a partir de monoculturas em terras indígenas e outras comunidades. De acordo com seu plano, os povos e comunidades indígenas realizariam essas atividades com trabalho não remunerado ou, como se descreveria abertamente, o trabalho escravo. Esses produtos seriam então exportados para a Ásia, Europa e Estados Unidos.

De acordo com um estudo publicado pela Springera Millenium não honrou sua obrigação de realizar estudos ambientais que são legalmente necessários para a instalação de uma indústria. Em vez disso, eles propuseram a construção de um hospital para os indígenas como forma de compensação.

A “agenda de mortes” do governo inclui a abolição das reservas legais e a abertura de unidades de conservação e terras indígenas à mineração, agricultura e pecuária.

O governo de Jair Bolsonaro, com total apoio dos ‘ruralistas’, enfraqueceu intencionalmente os órgãos ambientais e o código florestal do país, negando também a existência das mudanças climáticas.

Eles reduziram áreas protegidas, cortaram fundos do governo para a proteção ambiental, enfraqueceram os sistemas de monitoramento e combate a crimes ambientais, aprovaram 1682 novos agrotóxicos, deixando uma porta aberta para a poluição, o desmatamento, a violência, a criminalidade e a devastação em toda a região e comunidades da Amazônia e do resto do país.

Políticos de Manaus e de todo o país afirmam que a BR-319 seria um “modelo de sustentabilidade para o mundo”, mas indicações e estudos realizados até agora sugerem o contrário. Seguem a mesma retórica, afirmando que a rodovia é um símbolo de progresso e soberania, e que a floresta amazônica pertence ao Brasil, nenhuma interferência estrangeira deve ser permitida.

Violência & Crime

Populações locais e indígenas sofrem com banditismo (Img Web)

A BR-319 trouxe crime e violência para esta região por garimpeiros ilegais, madeireiros, posseiros e grileiros, ameaçando matar qualquer um que se recuse a cumprir suas regras.

Segundo Ferrante, a rodovia também atraiu quadrilhas criminosas e crime organizado para a área, com a participação total de políticos de alta escala.

Existem inúmeras organizações nacionais e internacionais que financiam a mineração ilegal associada ao tráfico de drogas e armas ilegais. O crime organizado explodiu e tomou conta da floresta amazônica.

A lei de armas de Bolsonaro, a licença CAC (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), permite que os brasileiros comprem uma grande variedade de armas se não tiverem antecedentes criminais, sejam registrados em um clube de tiro, e possam demonstrar proficiência com uma arma de fogo.

O afrouxamento da lei de restrições de armas de fogo está criando novos mecanismos para que grupos criminosos comprem armas legalmente, consequentemente aumentando a violência na Amazônia e no Brasil.

Outra questão preocupante é a manutenção de pistas clandestinas, principalmente para a mineração e também para o crime organizado.

De acordo com informações obtidas pelo The Intercepto Centro Pulitzer e a Earthrise Media, existem 362 pistas clandestinas, sem registro na Anac, a Agência Nacional de Aviação, na Amazônia Legal. Mas esse número quase triplica, se você considerar as pistas abertas sem autorização e registro, totalizando pelo menos 1.269 pistas de pouso e decolagem.

Comunidades indígenas e tradicionais também são vítimas de constantes ameaças verbais e físicas violentas, às vezes terminando em fatalidades, mas não são as únicas.

Ferrante, um cientista que passou muitos anos expondo a situação na região ao publicar seus estudos em revistas acadêmicas, enfrentou várias ameaças e violência contra sua própria vida.

Ele recebeu inúmeras ameaças de morte por ligações anônimas e mensagens de texto. Um motorista de Uber “falso” disse a Ferrante que ele deveria ficar calado porque ele estava interferindo em assuntos de segurança nacional. Produtos químicos jogados no sistema de água de sua casa também o envenenaram. Ferrante estava aterrorizado e retraído, incapaz de sair por alguns meses.

Não há dúvida de que o projeto de reconstrução da BR-319 impactará comunidades tradicionais e indígenas locais, bem como o meio ambiente, a biodiversidade e as mudanças climáticas, com consequências muito graves para o Brasil no resto do mundo.

Jogadores Nacionais e Internacionais
BR-319 Ameaça Floresta Amazônica
Um jogo bilionários envolvendo diversos interesses escusos. (Img. Web)

O Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina e soja, que são as duas commodities responsáveis por 90% do desmatamento da floresta amazônicaPesquisas mostram que 70% da Amazônia cortada é povoada por gado.

É essencial entender que a reconstrução da rodovia BR-319 tem uma longa lista nacional e internacional de poderosos apoiadores defendendo seus próprios interesses.

Relatório da Agribusiness Watch revela que bancos e fundos internacionais estão financiando o lobby do agronegócio brasileiro no país, incluindo JP Morgan Chase, BlackRock e Bank of America, cada um tendo investido US$ 1 bilhão em pecuária. American International Group, AIG e Citigroup também são fornecedores de fundos para empresas brasileiras do agronegócio.

Os investidores europeus incluem Allianz e Deutsche Bank, Barclays, Standard Chartered, BBVA, Santander, BNP Paribas, ABN-Amro e Rabobank, entre outros, investiram US$ 4,5 bilhões em empresas de IPA, parte do Instituto Pensar Agro, apoiando a FPA (Frente Parlamentar Agropecuária) e responsável por um pacote de medidas antiambientais que estão sendo considerados no Congresso Brasileiro.

O relatório também lista diversas empresas, entre elas JBS, Suzano, Marfrig, ADM e Cargill, que utilizam sua influência na política brasileira contra os interesses das políticas ambientais e grupos indígenas.

Os bancos brasileiros que financiam o setor do agronegócio incluem BTG Pactual, Safra, Verde Asset Management, Vinci Partners e XP Investimentos, mantendo títulos estimados em US$ 9,3 bilhões.

Segundo o De Olho nos Ruralistas, em 2019, a Agribusiness Watch revelou algumas das multinacionais que eram filiadas por associações que mantêm o IPA (Instituto Pensar Agro): Bayer, Basf e Syngenta, Cargill, Bunge, ADM e Louis Dreyfus; JBS, Marfrig, Nestlé e Danone.

Durante o governo Bolsonaro, empresas do agronegócio se reuniram 278 vezes com funcionários do governo do MAPA, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Parte da agenda foi a flexibilização das regras para os agrotóxicos.

Não há dúvida de que a reconstrução da BR-319 beneficiará a maioria dos atores citados, que apoiam continuamente e investem no setor do agronegócio no Brasil, incluindo bancos, empresas de agroquímicos, governos, políticos e corporações, no Brasil e no exterior.

O mesmo não pode ser dito sobre o meio ambiente, as mudanças climáticas, as comunidades tradicionais e indígenas locais e toda a população mundial, que pagarão um alto preço por essas ações insensanas.

A Estrada à Frente

BR-319 Ameaça Floresta Amazônica
Desconsiderar o potencial das hidrovias é insano. (Img. Web)

Este é um momento político decisivo para o Brasil e para o mundo, já que o segundo mandato das eleições presidenciais se aproxima do fim no final de outubro e os brasileiros escolherão seu próximo presidente, Jair Bolsonaro ou Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), ambos lutando pela pole position.

Ferrante mencionou o que pode acontecer se Lula for eleito o próximo presidente do Brasil:

“Estive presente durante a declaração de Lula durante sua visita a Manaus, em setembro de 2022, quando mencionou que escolherá três grandes projetos de infraestrutura para cada estado do Brasil, principalmente estradas, o que significa que o projeto da rodovia BR-319 pode estar no topo de sua lista. Ele disse explicitamente que não é contra a rodovia, mas os ritos ambientais e a consulta dos povos indígenas devem ser seguidos”,”

O projeto da rodovia BR-319 está em um estágio muito avançado. Precisamos urgentemente da suspensão da licença de manutenção, pendente de estudos e consultas com os povos indígenas. É preciso criar uma força-tarefa para fiscalizar as ações do INCRA, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e do Ministério da Economia, pois tentam continuamente legalizar essas terras”, acrescentou Ferrante.

Quando questionado sobre a mensagem que tem para a comunidade internacional, Ferrante respondeu:

“Países que importam commodities do Brasil precisam rever seus acordos comerciais, principalmente para carne, soja, minérios, biocombustíveis e agora petróleo e seus derivados que vêm da Amazônia, extraídos pela Rosfnet. O agronegócio brasileiro tornou-se uma ameaça à Amazônia, aos povos tradicionais e ao clima global”,

acrescentou:

“Todos os países do mundo precisam voltar os olhos para o que está acontecendo na Amazônia agora, especialmente na rodovia BR-319. Este é um assunto para o mundo discutir porque as consequências desta rodovia são globais, incluindo novos surtos de pandemia e aceleração das mudanças climáticas que já estão causando ondas de calor levando à mortalidade na Europa. Os danos ambientais causados aqui ultrapassam as fronteiras do Brasil e devem ser monitorados pelo mundo inteiro”.

 

Monica Piccinini – Jornalista Ambiental – Londres GB

 

 

 

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Redação

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