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O Seu Gato Querido!

Atualmente existe uma infinidade de marcas e tipos de rações no mercado. Nesta abordagem científica a professora de Microbiologia Bianca de Miranda Peres faz importantes considerações quanto a qualidade do alimento que você deve oferecer ao seu gato querido!

Bianca de Miranda Peres

São Paulo, 01/12 de 2020

5,3 Minutos.

Os preços variam bastante e alguns fatores importantes na definição do preço são o tipo e a qualidade dos componentes oferecidos bem como a presença (ou ausência) de conservantes, corantes ou palatabilizantes (o que dá sabor).

Com o crescimento do movimento vegano nos últimos anos, o sucesso foi extrapolado à produção de rações para cães e gatos. E assim surgiu uma nova polêmica. Se gatos são carnívoros, como é possível que eles vivam sem componentes de origem animal?

Antes de irmos adiante é preciso esclarecer alguns pontos em relação à nutrição de felinos. Dizer que os felinos (e os gatos domésticos) são carnívoros estritos significa que determinados compostos, de origem exclusivamente animal, são essenciais e que, a falta deles, resulta em problemas de saúde.

Adaptações na morfologia do trato digestório e nas vias metabólicas (caminhos por meio dos quais é possível um organismo degradar ou formar um composto) e nos hábitos alimentares são necessários a esse tipo de dieta. Vamos a um exemplo. Assim como seus ancestrais, os gatos são animais caçadores.  

Mas, eles comem capim…

Como eles ainda guardam essas raízes evolutivas em seu DNA, podemos observar alguns comportamentos em nossos gatinhos que se assemelham à vida selvagem. Vocês já devem ter reparado que eles se alimentam várias vezes por dia e em pequenas porções, certo? Isso ocorre porque os ancestrais selvagens caçavam diversas presas pequenas ao longo do dia.

Essas presas apresentavam grandes quantidades de proteína animal, pouca gordura e pouquíssimo carboidrato. Em outras palavras, os requerimentos nutricionais dos gatos são supridos basicamente com proteína animal (=CARNE!). A proteína é utilizada não só para a manutenção corporal, mas também para a obtenção de energia.

Então a primeira coisa a se considerar em relação à alimentação dos gatos é que ração seca NÃO é o alimento mais adequado. Primeiro, porque a concentração de carboidratos é muito alta afinal, carne é mais caro que batata. Segundo, porque elas geralmente contêm alta porcentagem de proteínas vegetais. Derivadas de grãos e legumes, elas não suprem as necessidades nutricionais dos gatos simplesmente porque eles não conseguem absorvê-las tão bem.

Por fim, porque a quantidade de água é muito baixa (7-10%). Lembre-se que gatos são parentes de animais desérticos e que suprem sua necessidade de água por meio das presas e, portanto, não apresentam o impulso da sede tão pronunciada. Além disso, as carnes são submetidas ao cozimento a altas temperaturas e por um tempo muito longo, causando uma diminuição no valor biológico da proteína (diminuição da biodisponibilidade).

Particularidades nutricionais dos gatos

A biodisponibilidade é o quanto o organismo consegue aproveitar de um composto. Se ela diminui, podemos dizer que a qualidade da proteína decai. Explicando a biodisponibilidade de outra forma: imaginem um vegetariano no rodízio de churrasco. Ele pago o preço inteiro, mas não vai aproveitar tudo o que tem disponível no buffet. Só vai comer a salada e a sobremesa.

Para aprofundarmos a nossa discussão vamos explorar as exigências nutricionais próprias dos gatos. Primeiro, é preciso deixar claro que o alto requerimento por proteínas não está relacionado com a aquisição de alguns aminoácidos essenciais em quantidades elevadas (calma aí que já vamos falar disso!), mas sim devido ao alto requerimento por nitrogênio!

Todos os animais precisam de nitrogênio, pois esse elemento químico está presente nos aminoácidos (os bloquinhos construtores de proteínas) e DNA/RNA. Diante de uma dieta com pouco nitrogênio, nós e outros animais somos capazes de conservar aquela pequena concentração adquirida pelo alimento enquanto os gatos não têm essa capacidade.

Quanto aos aminoácidos, nossos gatinhos, assim como nós, precisam adquirir alguns deles exclusivamente por meio da dieta. Esse tipo de aminoácido é denominado essencial. É importante mencionar que as quantidades requeridas de alguns deles são muito elevadas. A arginina representa um desses casos. Importante precursor no ciclo da ureia (responsável pela transformação de amônia em ureia), sua deficiência causa excesso de amônia no sangue. E a amônia é extremamente tóxica!

Suplementação ajuda?

Além disso, os alimentos para gatos devem ser suplementados com taurina. A conversão de cisteína em taurina (que é um aminoácido sulfônico) pode ser realizada por humanos e cães, mas é pouco ativa nos gatos. Além disso, a taurina é o único composto utilizado na conjugação (e formação) de ácidos biliares (atuam como um detergente na degradação de gorduras).

Mas a biodisponibilidade (olha ela aí de novo) é um fator muito importante em relação à suplementação com taurina. Se a dieta tiver matéria vegetal ou tiver sido processada a ponto de formar produção de reação de Maillard (ocorre no aquecimento do alimento, causa escurecimento, mudança no sabor e diminui a biodisponibilidade) a taurina suplementada torna-se limitada.

Além disso, como é solúvel em água, alimentos úmidos necessitam de uma suplementação maior. Outras particularidades em relação ao metabolismo dos gatos e que requer atenção na produção de um alimento adequado estão resumidas nesta Tabela1.

Seu gato querido
                                            Para alimentar o seu gato querido! (Img. cedida)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É claro que o responsável por formular a ração sabe de tudo isso (esperamos!), mas como suprir componentes de origem exclusivamente animal em uma ração vegana? Bom, para isso são utilizadas formas sintéticas. Mas, será que compostos naturais e sintéticos tem a mesma efetividade??

Alimentação vegana x ração convencional

Infelizmente NÃO! Suplementos sintéticos são compostos isolados que não contém diversas estruturas complexas (enzimas, minerais) que proporcionam a sua completa funcionalidade.

Além disso, pode ocorrer desequilíbrio de outros componentes corporais que foram requisitados pelo composto sintético para funcionar adequadamente. Bom, é preciso dizer que até mesmo as rações convencionais utilizam formas sintéticas em sua composição.

Aqui voltamos ao começo do texto que diz que razões secas estão longe de serem o alimento mais adequados aos gatos. Para sabermos se um produto é prejudicial ou benéfico, estudos científicos são necessários. Como a ração vegana é vendida no Brasil há pouco tempo, faltam dados comparativos.

[Esse assunto será tratado em outro texto no Gatologia].

Para a marca comercializada no Brasil, a Bicho Green, existe apenas 1 trabalho que compara a eficácia dela em relação às tradicionais. Isso foi realizado na Universidade Federal de Lavras como trabalho de conclusão de curso de um aluno de Zootecnia. O estudo comparou a ração vegana a duas tradicionais, sendo uma versão econômica e uma super premium. Para isso, 18 gatos foram divididos em 3 grupos (6 gatos para cada tipo de ração).

O alimento super premium apresentou melhor digestibilidade (biodisponibilidade e fração que não é recuperada nas fezes) e parâmetros relacionado à urina (pH e densidade urinária). Já o alimento vegano apresentou qualidade satisfatória em relação à digestibilidade e pH, porém melhor que o alimento econômico.

Um pouco mais de Ciência e paciência

O próprio autor menciona que são necessários mais estudos que abranjam outros fatores como, por exemplo, a influência desse tipo de dieta no microbioma intestinal. Uma vez que cada fase da vida do animal requer um perfil alimentar diferente, é possível encontrar rações tradicionais para filhotes, adultos, senis e até mesmo para castrados, lactantes etc.

No entanto, eu questionei os fabricantes da ração vegana Bicho Green quanto à adequação do produto para gatos castrados e eles responderam que a ração também podia ser utilizada por esses animais. Quanto à forma de distribuição das porções, eles disseram que as porções são as mesmas que para animais não castrados.

O seu gato querido é um ser específico. Suas particularidades que vão muito além da aparência! (Img Web)
Filosofia, Cultura e Biologia

Dessa forma, acredito que para trocar a alimentação dos gatos por uma ração vegana ainda carece de evidências científicas suficientes que comprovem a eficácia da ração alternativa.

É preciso analisar diversos parâmetros relacionados à saúde especialmente o efeito à longo prazo o que, por sua vez, esbarra em questões éticas.

Os trabalhos também precisam se adequar à rígidos protocolos de teste de eficácia, caso contrário, os resultados tornam-se arbitrários.

Acho que cabe aqui uma reflexão.

Embora já tenhamos interferido nos hábitos dos gatos desde que os domesticamos (na verdade, foram eles que nos domesticaram!), até que ponto isso é admissível?

 

Até que ponto é certo projetarmos nossas filosofias de vida aos nossos animais?

Dúvidas persistentes

No site vegpet é possível obter a composição da ração (como esperado muitos compostos são sintéticos) e a sugestão de consumo de acordo com o peso do animal. Realmente, não há nenhuma especificação para as diferentes fases de vida do animal.  Quanto aos outros países, KNIGHT; LEITSBERGER, (2016) apresentam uma revisão sobre o assunto que inclui trabalhos cujos dados foram obtidos a partir dos próprios tutores dos animais e, portanto, não seguem nenhum rigor científico.

Entretanto, enquanto alguns estudos demonstraram anormalidades nos níveis de ácido fólico, sintomas de atrofia de retina e deficiência nos níveis de potássio, nota-se que isso ocorre devido à falta de padronização de protocolos de análise. Portanto, é difícil concluir que esses sintomas estejam diretamente relacionados com a dieta. Por outro lado, muito tutores relatam que a troca da ração convencional para a vegana proporcionou diversos benefícios aos animais como controle de alergias, melhora do pelo, perda de peso, regressão da diabetes etc.

Assim, com o crescimento de produtos veganos para pets será preciso discutirmos esses assuntos com mais seriedade. Uma coisa é certa, a utilização de ração seca como alimento adequado aos gatos, seja ela vegana ou não, precisa ser revista. E, para finalizar, um alerta. Caso queiram mudar a alimentação dos gatos de vocês, não façam isso por conta própria. Por isso, só o veterinário poderá dizer como isso deve ser feito. Uma única refeição desbalanceada pode ser capaz de causar grandes malefícios à saúde do seu bichano.


Bianca de Miranda Peres – Profª. Drª. Microbiologia (PRONATEC – PROSAB) – ICB USP

Referências:


HAGIWARA, M. K. A importância dos aminoácidos na nutrição dos gatos domésticos. p. 7–11, 2010.
KNIGHT, A.; LEITSBERGER, M. Vegetarian versus meat-based diets for companion animals. Animals, v. 6, n. 9, 2016.
LITTLE, SUSAN E. Medicina Interna de Felinos. 7a edição. Elsevier: Rio de Janeiro, 2017.
MARKOVIĆ, D.; NIKOLIĆ, G. Misconceptions About Nutritional Supplements and Modern Diseases. Hrana U Zdravlju I Bolesti, v. 4, n. 1, p. 34–47, 2015.
MORRIS, J. G. Unique nutrient requirements of cats appear to be diet – induced evolutionary adaptations. v. 13, p. 187–194, 2001.
PIERSON, L. Feeding your cat: know the basics of feline nutrition.
Disponível em: https://catinfo.org/#Cats_Need_Animal-Based_Protein. Acesso em 07/08/2019.

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Redação

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