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Austeridade para quem?

O que é austeridade? Em política, em ética, e em economia. Dos diversos sentidos a serem compreendidos, fiquemos com a Economia, por enquanto.

Luiz Cesar Fernandes

São Paulo, 06/02/2024

3 Minutos.

Parte considerável do jornalismo brasileiro mostra viés ideológico ao usar, de forma intencional, a palavra “rombo” no debate fiscal. O termo técnico é déficit, que pode ser o resultado de ações positivas para economia. Como as que geram emprego, reduzem pobreza, pagamento de obrigações etc., ou resultado de flutuações econômicas conjunturais.

A terminologia “rombo” faz parte do terrorismo fiscal que busca criar um clima de medo para impor a agenda econômica da austeridade. Essa é uma política de classe ou uma resposta dos governos às demandas do mercado e das elites econômicas às custas de direitos sociais da população e dos acordos democráticos, como a Constituição de 1988.

A ideia central por trás do argumento da austeridade é que, durante períodos de crise, políticas fiscais restritivas, como o aumento de impostos ou, de preferência, a diminuição dos gastos do governo, podem ter um efeito expansionista, ou seja, impulsionar o crescimento econômico.

Entretanto, medidas como a redução da oferta de bens e serviços públicos, cortes em programas sociais e reformas que prejudicam os trabalhadores assalariados e as classes mais vulneráveis, induzem a graves custos sociais através da redução do PIB. Como, consequência temos a diminuição do emprego, do investimento privado e dos salários, como bem evidenciado no artigo The Political Costs of Austerity.

O pobre é quem paga!

A literatura científica crítica sobre ajustes fiscais em momentos de recessões é cada vez maior; Gabriel et al (2023); Arestis et al (2022); Bonèa & Tajnikar (2018); Bova et al (2018); Lopes & Amaral (2018); Fatás & Summers (2018); Stiblar (2018); House et al (2017); Ball et al (2013); Jayadev & Konczal (2010). Até o próprio FMI (2016), principalmente em razão dos efeitos negativos dos ajustes executados pelos países europeus durante a fase de recuperação económico-social da crise financeira de 2008. Os que optaram por um rigoroso ajuste fiscal enfrentaram um cenário económico recessivo, acompanhado por aumento na dívida pública.

Austeridade para quem?
Jogar nas costas dos menos favorecidos é prática antiga das elites brasileiras. (img Web)

Por assim, as políticas de austeridade resguardam os interesses das elites em prejuízo ao bem-estar da maioria da população. Isso implica na realocação de recursos da maioria assalariada para beneficiar uma minoria, cuja riqueza se baseia em patrimônios e rendas.

Em outras palavras, a austeridade é um projeto político que orienta a alocação dos recursos públicos pelo Estado, atuando em favor de uma classe específica ou de um grupo restrito de beneficiários, com salienta Mattei (2023).

De modo frequente, aqueles que apoiam a política de austeridade buscam convencer a sociedade de que essa abordagem é a única solução viável para reduzir a dívida pública ou superar uma recessão econômica.


Papai Noel existe?

Esse esforço de persuasão, sobretudo pelo mercado e economistas liberais, muitas vezes se baseia na associação da retórica da austeridade a duas narrativas de ideias incertas: a duvidosa comparação entre o orçamento público e o doméstico, e a conhecida argumentação fantasiosa da “fada da confiança”.

Ou seja, ao demonstrar responsabilidade nas contas públicas, o governo conquista credibilidade, o que resulta na melhoria das expectativas dos agentes do mercado. Assim, a “fada da confiança” surge, impulsionando a recuperação econômica por meio do aumento dos investimentos empresariais e da atração de capitais externos.

Isso restabelece o crescimento econômico e, consequentemente, aumenta a arrecadação fiscal, contribuindo para a redução da dívida pública. Dessa maneira, a austeridade se apresenta como a milagrosa capacidade de reequilibrar a economia.

Tirar mais de quem não tem

Entretanto, o incoerente equívoco ao comparar o orçamento público com o orçamento doméstico, na esperança de que a “fada da confiança” retorne, desconsidera as complexidades e diferenças fundamentais entre esses dois contextos. Essa analogia conduz a conclusões distorcidas e inadequadas, sintetizada em três pontos:

  • Primeiro, diferente da família, o governo tem a capacidade de definir o seu orçamento.

A arrecadação de impostos decorre de uma decisão política e está ao alcance do governo. Aumentar ou reduzir a carga tributária interfere em sua arrecadação. Já a família não pode definir o quanto ganha, pois, o rendimento (salários) no final do mês, de um modo geral, é fixo.

  • Segundo: o gasto da família não retorna sobre aumento de sua renda. Diferentemente, quando o governo gasta, parte do gasto retorna sob a forma de arrecadação de impostos. Melhor dizendo, ao acelerar o crescimento económico com políticas de estímulos ao consumo, o governo aumenta, também, a sua receita.

Como é conhecido, o aumento dos gastos públicos durante períodos de crise económica, especialmente quando há um elevado nível de desemprego e capacidade produtiva ociosa, estimula a utilização dessa capacidade, contribuindo para a redução do desemprego e impulsionando o crescimento económico.

  • Terceiro: compara o endividamento da família com o do governo. A família se endivida com Bancos e/ou com terceiros. Caso não possa liquidar sua dívida, está “falida”. A família não emite moeda e não define a taxa de juros das dívidas que pagam com os bancos. Já o governo faz tudo isso. O governo gerência suas dívidas e posterga seus pagamentos quando emite títulos. Deste modo, o governo jamais “quebra”, porque tem a capacidade de “rolar” suas dívidas na própria moeda que emite.      
Austeridade para quem?
O papo dos governos que trabalham para a elite! (Img. cedida)
Duro de entender?

De forma clara, é intuitivo entender porque um ajuste fiscal não necessariamente melhora a confiança.

O empresário investe quando há demanda e não porque o governo fez ajuste fiscal.

Austeridade para quem?

A contração do gasto público em momentos de crise não apenas não aumenta a demanda, mas reduz o investimento privado, ampliando, ainda mais, a crise. Isso é muito bem descrito em Keynes (1937).

É no “boom” e não na crise que o governo pode cortar gastos.

Na crise, como os recursos da sociedade estão subempregados, o aumento do gasto público gera crescimento e emprego, enquanto que nos momentos de “boom”, os gastos públicos teriam efeito menor sobre a atividade econômica, dado que o setor privado estaria atuando de forma expansionista.

Melhor dizendo, quando a economia está aquecida, a redução do investimento em uma obra pública, por exemplo, pode não ter um impacto tão adverso, até porque a empresa contratada pelo governo poderá encontrar oportunidades de contratação no setor privado. Então austeridade para quem?

Erro sistemático é igual truque sujo?

No entanto, a situação é diferente em períodos de escassez de demanda, quando há desemprego e excesso de capacidade ociosa. Nesse caso, a demanda pública aumenta a renda e o emprego, e os efeitos da austeridade podem ser vistos de forma espontânea.

Deste modo, em síntese, quando os recursos da sociedade estão subempregados, o aumento do gasto público gera crescimento e emprego, enquanto que nos momentos de crescimento econômico, os gastos públicos teriam efeito menor sobre a atividade econômica. Portanto, o momento em que o setor privado estaria atuando na plena ocupação de sua produtividade.

Austeridade para quem?              A riqueza e a indiferença, no jogo de ganha-ganha e… Consequências sociais. (Img. Web)

Como bem observado em Fiscal austerity and the financing of education in Brazil, a perspectiva da política de austeridade consiste na proteção dos interesses das elites, sendo também um instrumento para minar e consolidar o poder corporativo no sistema político.

Fundamentalmente, subjaz um argumento moral de que os excessos devem ser corrigidos de abstinência e sacrifícios que atingem, principalmente, as classes menos favorecidas, e a austeridade é a prescrição para tal ‘correção‘.

Luiz Cesar Fernandes – Ph.D. Pesquisador/Professor Ciência Política e Adm. Pública.

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Redação

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2 thoughts on “Austeridade para quem?

  • Danilo José Soares Kahil

    Excelente e elucidativo texto. A frase “O empresário investe quando há demanda e não porque o governo fez ajuste fiscal.” é definição que não querem ouvir.

    • Sem dúvidas Danilo Kahil. Quem é empresário sabe disso. Educar as pessoas neste sentido é um ato de bravura. Mas, tem os que não querem alterar o status quo. Obrigado pela sua participação e por nos prestigiar.

Fechado para comentários.