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Educação Musical – Estética e Praxial.

O ensino de música nas escolas da rede de ensino de nível fundamental, assim como a educação em geral, regulado por leis e outros documentos legais, apresentam aspectos que podem ser identificados com as perspectivas filosóficas de uma época, de uma ou várias tendências pedagógicas, ideológicas ou de políticas públicas para a educação de artes.

Jeasir S. do Rêgo

Florianópolis, 20/03 de 2020

3 Min.

 

A pesquisa “Perspectivas curriculares brasileiras oficiais para a educação musical nas escolas públicas do ensino fundamental”, realizada por Fernandes (2004), em todos os estados e nas capitais mais representativas de cada região do Brasil, além do Distrito Federal, teve por finalidade analisar as propostas curriculares de educação musical de cada uma das unidades federativas.

O relatório parcial (junho de 1998), no que se refere à análise das considerações filosóficas dos documentos, aponta para uma predominância de fundamentos filosóficos vinculados a argumentos intrínsecos – onde os valores da educação musical estão contidos no valor da própria música, enquanto uma minoria (20%) apresentou argumentos extrínsecos onde a educação musical está fundamentada em fins não musicais, e sim sociais e utilitários.

A abordagem filosófica em educação musical que enfatiza os valores intrínsecos da atividade musical é discutida por Fernandes (2004), que utiliza referências de Temmerman* para situar as questões filosóficas da educação musical. Tal abordagem, que enfatiza os valores intrínsecos da experiência musical

[...] se refere à educação musical como educação estética e está baseada na promoção da 
música por ela mesma, não requerendo justificativa externa, ou seja, os valores da educação
musical estão contidos no valor próprio da música. Vários autores defendem que a meta da
educação musical é o desenvolvimento da consciência e da sensibilidade estética, que inclui
a percepção e a resposta às qualidades expressivas da música. Essa filosofia vai além da
simples aquisição de conhecimentos sobre música e da habilidade de execução de peças.
Ela inclui a completa imersão na música, suas combinações sonoras, forma e desenvolvimento,
tratando da função única da música “como um significante modo simbólico disponível aos
indivíduos, para se expressarem simbolicamente, o que não pode ser representado pela
linguagem verbal”.
(TEMMEERMAN, apud FERNANDES, 2004, p.83).
Já a abordagem filosófica em educação musical que evidencia os valores extrínsecos da atividade musical
[...] é referida pela literatura como utilitária e funcional, referencial ou social e está 
fundamentada na promoção da música na educação com fins não musicais, ou seja, na educação
por valores instrumentais e não estéticos... a literatura aponta cinco funções utilitárias
na música: 1) desenvolvimento emocional; 2) universalidade da música como um meio para a
comunicação social; 3) intenção moral e promoção de direção moral para a conduta diária;
4) valor disciplinar; 5) valor espiritual. (FERNANDES, 2004, p.83).

As abordagens intrínseca e extrínseca das filosofias da educação musical, aqui entendidas e nomeadas como Educação Musical Estética por Bennet Reimer, e Educação Musical Praxial, por David Eliot, apresentam fundamentos definidos a partir de vários teóricos da psicologia, da linguística, da sociologia, da filosofia e outros campos do conhecimento.

Além disso, esses autores investigam cientificamente a natureza da experiência em música, estudo este que servirá como base para a defesa de cada uma de suas perspectivas e suas aplicações no campo pedagógico.

Reimer justifica a necessidade de uma Filosofia da Educação Musical (FEM) que “deve ser uma demonstração sistemática da natureza e do valor da educação. De acordo com essa premissa, esta demonstração deve vir de uma investigação da natureza e do valor da música”. (REIMER, 1970, p.1).

Educação musical (Img Internet)

Compreender esses valores e a natureza da experiência musical é um fator preponderante para que profissionais apresentem para a sociedade como um todo a importância da educação musical.

As teorias estéticas são amplamente discutidas por Reimer, que aponta referências e explica porque adota cada uma delas. São consideradas as correntes denominadas Absolutismo, Referencialismo, Formalismo e Expressionismo estético.

Para que tenhamos uma perspectiva inicial destas teorias, Reimer apresenta cada uma delas:

a) O Absolutismo julga que para entender o significado do fazer arte (e da obra de arte) é necessário atentar para as qualidades internas do criar e do pensamento criativo (artístico). Em música devem-se perceber os sons, melodia, ritmo, harmonia, tons, textura, dinâmica, forma e atentar para o resultado deles, como agem sobre o ser humano.

b) O Referencialismo propõe outra leitura. De acordo com esta perspectiva, o significado e os valores da obra de arte e do fazer arte existem fora do ser criativo. Para se entender o significado da arte é necessário mergulhar no mundo das ideias, emoções, eventos; a arte se refere ao ser em um mundo fora da obra de arte.

c) O Formalismo concentra-se exclusivamente nas qualidades intrínsecas da obra de arte. Nega a existência e o valor de significado extrínseco (extra-artístico) e valor ou, pelo menos, nega que o mundo exterior contribua com algo de importância para a obra de arte e a experiência dela. As influências culturais do artista podem ser reconhecidas, mas são insignificantes ou secundárias.

Reimer defende uma postura Absolutista-Expressionista, considerando esta vertente c “mais adequada para a educação das massas numa sociedade democrática” (REIMER, 1989, p.27). O que distingue o trabalho com arte de várias outras experiências é o seu caráter subjetivo; portanto sempre haverá respostas subjetivas para estas questões.

O sentir estético, como parte do ser, é especialmente difícil de oralizar. Neste sentido, educar musicalmente é educar esteticamente e isso intenta tornar mais hábeis para a experiência musical, artística. É uma educação dos sentidos.

A questão central da proposta filosófica de Reimer é como a educação musical pode ser também uma educação estética. A audição como parte inexorável da criação deve ser encorajada e sensibilizada pela performance, pela composição e, também, pela improvisação.

Reimer considera duas categorias de experiência com música, estética e musicais e não estéticas e não musicais, podendo ser funcional, referencial ou acontecer em nível técnico crítico. Funcional é a que se refere ao caráter utilitário da experiência estética, ou seja, o uso prático, terapêutico, moral, religioso, moral, político, comercial, entre outros, da arte.

Referencial é a que não foca a experiência musical em si, apenas aponta esse tipo de experiência. O nível técnico-crítico difere das experiências referenciais por seu caráter pré-estético e faz alusão aos aspectos técnicos da obra, portanto uma preocupação com a obra em si, seus elementos intrínsecos formais.

Quando se coloca lado a lado a audição, performance, composição e improvisação, parece ficar clara aqui a correspondência dos conceitos de valores extrínsecos e intrínsecos citados por Fernandes (2004) e a preocupação com essas duas dimensões da experiência musical, a estética e a prática.

Reimer faz referência a dois pontos de vista muito característicos do pensamento de James Mursell – que foi uma referencia importante para o estudo de diversos aspectos da área de educação musical nos Estados Unidos da América – que ilustram sua preocupação estética:

[...] em filosofia, a noção da essência da música é de vida interior, e na psicologia a noção
é de crescimento musical. Essas duas ideias, presentes em todos os escritos, estão
intimamente ligados ao ensino da música (considerando seus desvios ocasionais), devendo-se
compreender suas interrelações na plenitude das suas muitas implicações. Em certo sentido,
o conceito é simples e elegante: toda música é caracterizada por uma essência relativa à
sua estrutura, o poder de senti-la de forma inteligente e o crescimento musical é o processo
gradual pelo qual a estrutura musical pode ser mais plenamente experimentada.
(REIMER, 1991, p.130).

David Elliott de certa forma se opõe ao pensamento de Reimer em termos filosóficos para a educação musical. No entanto, este autor também apresenta preocupações semelhantes às de Reimer ao defender a educação musical a partir da filosofia Praxial.

Esta propõe como foco do processo de ensino e aprendizagem, uma abordagem ampla e reflexiva, baseada nos seguintes fundamentos: a) os trabalhos musicais nos levam a diversos propósitos; b) a ‘inteligência musical’ envolve muitos tipos de pensamentos e conhecimentos que estão estreitamente relacionados; c) o significado da música na vida do ser humano pode explicar-se em termos de muitos valores importantes.

Do ponto de vista cultural, a música é “essencialmente um modo de ouvir os sons poderosamente moldados sobre metáforas impostas por nossas perspectivas e experiências psicofisiológicas” (ELLIOTT, 1990, p.13).

Para Elliott o caráter multidimensional da música explica a essência de sua filosofia, que traz um conceito multidimensional da música e do produto musical, da inteligência musical, dos valores musicais na vida do ser humano e os múltiplos enfoques para se chegar a estes valores. Sua proposta central é a que o fazer música de qualquer classe, gênero, estilo, seja o cerne de todo currículo de ensino de música.

Ensino musical nas escolas básicas é essencial na formação do indivíduo para a vida plena. (Img. Internet)

Dentro desse conceito de multidimensionalidade de Elliott, não há como não considerar o da multiculturalidade, onde encontramos preocupações com a diversidade cultural:

A diversidade de atividades musicais no mundo exclui-se da dedução de universalidade partindo da estética ocidental, da Musicologia e Etnomusicologia descritivas.

Estas disciplinas tendem a restringir-se na música como uma história limitada a objetos e prática; sons congelados em notações e gravações; valores metafísicos fixos e acomodados em um conjunto de obras; técnicas de execução sistematizadas; peças analisadas com metáforas acadêmicas, formas e fórmulas.

São precisamente estas concepções que se opõem, na sua aplicação, à música de todos os tempos e de todos os lugares. (ELLIOTT, 1990, P.12)

A despeito dos conflitantes conceitos acerca de multiculturalismo2 e do próprio conceito do que é multicultural Elliott apresenta uma preocupação etnológica ao considerar as várias manifestações espontâneas da música em diversos povos.

Sua ênfase aponta para o único ponto de universalidade da música, que é o simples fato de fazê-la, e todos os povos a fazem, independente de época, função, credo e localização geográfica. Com este conceito questiona os padrões e valores da tradição europeia, considerado preconceituosamente como música séria que despreza as práticas musicais que fogem a seus padrões, rotulando-as de música primitiva.

As dimensões estética e praxial são multidimensionais por apresentar cada uma delas grande complexidade de desdobramentos que vão do filosófico, psicológico, ao prático, social, e não parecem ser fragmentáveis. “Todas as formas de fazer musical envolvem uma forma multidimensional de pensar” (Elliott, 1995, 0.33).

Não se pode separá-las sem o risco eminente de um discurso vazio, sem lastro, ou de uma prática inconsistente, sem a consciência de sua contextualização.

A discussão sobre a experiência estética e a praxial considera primordial a multidimensionalide da música no que se refere à “dimensão externa ao homem, seu sentido social, contextual, cultural, formal e estilístico e sua dimensão interna, qual seja, seu sentido emocional, afetivo, sentimental, cognitivo, criativo” (Lazzarin, 2004, p.30). Em vários momentos encontramos tanto Reimer quanto Elliott referindo-se a tais questões em suas argumentações filosóficas.

A multidimensionalidade que cada filosofia compreende de uma forma própria, tem sido uma maneira de aprender e dominar a complexidade da experiência musical, mais que a tentativa de compreendê-la.

Também tem, contudo, ajudado a fragmentá-la, uma vez que existe uma hierarquia, ou seja, sempre uma dimensão é privilegiada em detrimento das outras. (LAZZARIN, 2004, p.30).

O ato de cantar, compor ou inventar canções, improvisar, tal qual fazem os repentistas nordestinos, por exemplo, atividades musicais espontâneas e de natureza independente da teoria ou da musicologia, do ensino e de uma metodologia científica, reúne essas dimensões.

Assim, também, de outro lado, atividades como arranjo ou regência, numa perspectiva convencional, que dependem de um conhecimento prévio de uma estrutura de linguagem pré-estabelecida, ou a própria audição, também são expressões dessas dimensões. Em ambas as filosofias as diferentes dimensões da experiência musical são consideradas de grande importância e muito produtivas.

Sendo assim, a educação estética, ou o foco na audição, apreciação, é tão importante quanto o fazer música, tocar um instrumento, compor uma obra.

Quando nós sabemos como fazer algo de forma competente e proficiente, nosso conhecimento não é manifestado verbalmente, mas praticamente. Durante a contínua ação de cantar e tocar instrumentos nosso conhecimento musical está nas nossas ações; nossos pensamentos musicais estão em nosso fazer musical. (ELLIOTT, 1995, p.56).

A reflexão sobre esses conceitos filosóficos discutidos por Reimer e Elliott a respeito da educação musical, pode trazer contribuições substanciais para a fundamentação de currículos para o ensino de música na escola brasileira.

Na segunda parte deste artigo, que será publicado aqui em breve, será apresentada uma breve discussão sobre documentos legais que tratam de aspectos da educação musical no Brasil e suas possíveis correlações com os fundamentos destes dois referenciais teóricos.  

 

Jeasir  S. Rego
Ms Música e Educação UDESC  – Professor do SESC Florianópolis

1-James Mursell escreveu extensivamente sobre educação musical e o uso da música na sala de aula. Ele enfatizou o papel do aluno na aprendizagem e a importância da motivação intrínseca.  Dentre vários escritos, o livro Music In American Schools. New York, NY: Silver Burdett Co. serviu de base para muitos educadores musicais norte-americanos.

2-O multiculturalismo, de uma maneira geral, vem sendo utilizado para definir uma visão de mundo que respeita a diversidade de modos de vida de cada uma das sociedades em suas características próprias, seus valores éticos e sua identidade cultural (…) Nas duas ‘filosofias’, música se torna uma forma de conhecimento do outro, tendo como premissa o caráter ético de respeito a todas as práticas musicais. (Lazzarin, 2204, p114).

 

Referências

ELLIOTT, D.J. 1990. El papel de la música y de la experiência musical em la sociedade moderna: hacia uma filosofia global de la educación musical. In. Gaiza, V.H. Ed. Nuevas Perspectivas de la Educación Musical. Buenos Aires: Guadalupe.

FERNANDES, J.N. Normatização, estrutura e organização do ensino de música nas escolas de educação básica do Brasil: LDBEN/96, PCN e currículos oficiais em questão. Revista da ABEM, v. 10, 75-78, mar.2004.

LAZZARIN, L.F. Uma compreensão da experiência com música através da crítica de duas ‘filosofias’ da educação musical. Fac. De Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

REIMER, B. Music Education Philosophy and Psychooogy after Mursell. In Basic concepts in music education. University Press Colorado, 1991, v.II.

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Redação

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